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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 21 de setembro de 2024
 

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Mensagem: Uma rua tranqüila

Ruth Tupinambá Graça

A rua Bocaiúva era uma rua tranqüila, pouco iluminada, e de ponta a ponta cheinha de casas residenciais.
As famílias se visitavam, constantemente, num relacionamento perfeito. Era como se fosse uma só família. As casas com telhado coloniais antigos, escurecidos pelo tempo, onde o lodo se acumulava, agarradas uma as outras, pareciam eternamente abraçadas e cochichando...
Trocaram-lhe o nome: rua Dr. Santos, em homenagem ao brilhante e dinâmico prefeito dos anos 30 (isto foi até louvável) mas descaracterizaram-na, com o passar dos anos.
As casas simples, acanhadas e que se abraçavam constantemente, foram derrubadas para darem lugar aos edifícios, lojas e butiques com vitrines sofisticadas, clínicas, barzinhos, lanchonetes, enfim, transformaram-na numa rua fria, totalmente comercial.
As famílias tradicionais, por onde andam agora?
Com tristeza e saudades eu as procuro.
Aquela camaradagem, o carinho do dia-a-dia e relacionamento gostoso entre vizinhos, tudo isto desapareceu, sem que déssemos conta do ocorrido.
Aquela era uma das mais importantes ruas da cidade: casas melhores, famílias mais abastadas e os chefes eram, na maioria, grandes comerciantes.
Iniciando na esquina, com a rua 15, hoje Presidente Vargas, morava o coronel João Fróes, com grande família. Comerciante e fazendeiro, sua casa era bonita, espaçosa, tinha até um sótão com sacada de ferro em arabesco. Em frente, ainda na esquina, ficava o Hotel dos Viajantes.
Logo acima, à esquerda, numa grande casa com vidraças coloridas, morava dona Altina, viúva do Juca Versiani, com filhos e netos.
Do mesmo lado, na esquina onde é hoje o Banco Nacional, ficava o antigo Hotel Sul Americano mais tarde de Antônio de Neco. Em frente morava o seu Orlando Fernandes, recém-chegado de Minas Nova com a esposa, dona Antoninha. Gente fina, bem acostumada, casa cheia de moças alegres e bonitas, grandes foliãs no nosso carnaval faziam grandes sucesso com seus saltos Luiz XV e boquinha de coração...
Em frente o coronel Artur Valle, casado com dona Aurora, da tradicional família Laborne, de Grão Mogol, dono do Cartório de Imóveis e professor da antiga Escola Normal. Suas filhas, Nelcínia e Anelita, já moças casadoiras e muito ´viajadas´ davam as coordenadas na moda feminina da nossa cidade. Os filhos, rapazes solteiros e grandes conquistadores, Geraldo Valle que o diga...
Logo acima, a família do Juca Fróes, viúvo, e suas filhas, Laura e Helena, que adoravam um sarau, apesar do pai ser ranzinza e ciumento. Era fazendeiro e grande criador de porcos.
Em frente, dona Júlia dos Anjos, viúva, professora, com seus filhos Ataliba, Olga e Dominguinhos. Foi minha mestra, da qual guardo as melhores lembranças.
Numa grande parte da rua (em dois quarteirões), morava os Mirandas. Família enorme, gente simples e pacata, preocupada com o comércio e donos de várias lojas e fazendas.
Na esquina com Dom Pedro II, onde é hoje Deusdará Sport, morava o juiz de Direito - doutor José Bessone, num imponente chalé -, casado com dona Quita Bessone, da tradicional família Fróes. Ele era viúvo e bem velho. Ela era muito elegante, se esnobava vestindo-se na última moda, sobressaindo entre aquelas senhoras simples. Era um casal fino, educado, cujos filhos Darcy e Waldir já estudavam fora. As filhas Zuleika e Marly eram meninas da nossa turma.
Mais adiante, do mesmo lado, a família do Totone Leão, com numerosa prole. Sua esposa, muito tranqüila (era um contraste), enquanto ele parecia um ´furacão´, de grande atividade nos negócios, e em outros assuntos também, mas gente muito boa.
Em frente, morava Sá Guiomar, uma mulher sofrida, viúva, costureira e grande especialista em ceroulas e camisas de homem. Andava sempre de preto, o que a tornava mais alta e magra. Nunca pude entender (quando menina), porque ela tinha barba e bigodes.
Adiante, do mesmo lado, morava seu Conrado Pereira, comerciante no Mercado Municipal e fazendeiro. Cara fechada (apenas para impor respeito), a mulher e as três filhas: Francisca, já adolescente, Lóca e Laura, muito alegres, excelentes companheiras, topavam qualquer brincadeira.
Em frente, subindo a rua, morava Lindolfo e seu Luiz, os melhores alfaiates da cidade. Eram dois amigos solteirões e que moravam juntos. Faziam todos os anos, um presépio maravilhoso, onde todas as figuras se movimentavam por uma engrenagem inventada por eles. E o presépio ocupava toda a sala de visitas e era admirado e visitado por todos da cidade.
Mais tarde se mudaram e o doutor Alfredo de Souza Coutinho, grande advogado, recém-chegado na cidade, casado com a bela Nazinha Ribeiro do Nascimento, ocuparam-na. Nesta casa nasceram todos os filhos deste casal. Era uma família famosa pela educação. Doutor Coutinho foi professor da Escola Normal e presidente da Câmara Municipal da nossa cidade, trabalhando muito para o seu progresso.
A Milene deve ter grande saudade desta rua, onde passou grande parte de sua vida.
Logo em seguida e do outro lado, havia uma agência do Correio e também a residência do casal Zezé dos Anjos e dona Antônia Veloso. Ambos de tradicional família, das mais antigas da cidade. Trabalhavam nos correios durante muitos anos. Ela era alegre, comunicativa, bem-humorada, dava notícia de todos os acontecimentos da cidade, sempre disposta a um bate-papo. Casa alegre, família numerosa, onde as crianças se viravam, principalmente Wanda e Heloísa, companheiras de infância dia e noite naquela saudosa rua.
Adiante, o doutor Urbino Viana, casado com dona Amélia, ambos baianos. Ele era professor da antiga Escola Normal e funcionário da Secretaria da Agricultura. Era um grande pesquisador, escreveu a Monografia Histórica e Geográfica de Montes Claros.
Logo acima, a Família Prates. Casal retraído, cujo chefe Catão Prates era culto, professor e diretor do Grupo Escolar Gonçalves Chaves por algum tempo, um casal bonito, cujos filhos herdaram esta qualidade, principalmente as filhas Juracy (tocava violão e cantava) e Maninha, que já naquela época balançavam o coração da rapaziada.
Do mesmo lado, na esquina com a Rua Dom João Pimenta, morava os Silveiras, cujo chefe Olegário Silveira era a calma e bondade em pessoa, juntamente com a sua mulher, dona Mariazinha. Era um casal perfeito e dedicado as obras de caridade, devotos de São Vicente.
A casa era cheia de moças casadoiras, prendadas, habilidosas, extremamente trabalhadoras, principalmente a Fininha, já viúva (mãe de Darcy e Mário), onde se faziam os melhores doces e os famosos quindins.
Nesta época, Mário era muito criança, mas já conhecido pelas peraltices. Sua inteligência e atividade já se manifestavam e como a cidade era pequena, o jeito era aprontar...
Bem em frente aos Silveira moravam o coronel João Câmara, grande matemático, fazendeiro e durante anos professor da antiga Escola Normal e por algum tempo seu diretor. Era casado com Dona Cândida Mendes Siqueira, natural de Salinas, cujo apelido era Daninha. Ele era o pai da paciência, ela era alegre, irrequieta, foi professora em Montes Claros cerca de quarenta anos. Era idealista, fundou a Escola Isolada, freqüentada por todas as crianças da Rua Bocaiúva e grande parte da cidade. Família numerosa, os mais velhos estudavam fora, e Naire Noeme eram moças elegantes e viajadas, promovendo sempre festas animadíssimas na residência dos pais. Família extremamente fina e educada, ainda hoje temos uma amostra, o nosso amigo Abelar Câmara com sua família, o professor João Câmara foi coletor das Rendas Estaduais e Federais, no município de Montes Claros.
Aos sábados e fim de semana, o movimento daquela rua era diferente, dedicado aos doces e biscoitos. Os grandes fumos nos quintais eram esquecidos. Mais tarde o cheirinho de pão quente se espalhava por toda a rua e, entrando pelas narinas excitava o desejo de um cafezinho acompanhado...
Começava a troca de pratinhos (hábito da rua) cobertos por alvos paninhos de crochê engomado, contendo o agrado para o vizinho.
A satisfação era enorme, quando na devolução do mesmo, vinha o pedido da receita, sinal de que agradara.
A troca de receitas era importante, pois uma novidade para o estômago sempre arrancaria um elogio do guloso e exigente marido.
Esmeravam-se nas especialidades do pão de queijo, biscoito de farinha, de fofão, João Beó, broa de milho, brevidade, bolo de arroz, de mandioca e o célebre espera marido...
E à noite, enquanto os menores dormiam, os maiores jogavam bola na rua, e os maridos davam suas voltinhas. Era a hora de tomar a fresca.
Colocavam cadeiras de palhinhas na porta da rua e as comadres vinham chegando, uma a uma, formando um grande grupo em semicírculo. Começava o bate-papo. Tratavam ali de diversos assuntos de família e da cidade, enquanto um gostoso café torrado em casa era servido com deliciosos biscoitos, especialidade da dona da casa:
Existia tranqüilidade nos lares, sem a necessidade dos altos muros que isolam, hoje, as famílias. Não existia a preocupação com o carro novo, a poupança, dólar, o esnobismo da moda com as etiquetas famosas, enfim, o consumismo sufocante.
Contentavam-se com o que possuíam, sem grandes ambições, naquela rua simples, meio cafona... mas cheia de amizades.


(Todas as fotos que ilustram esta crônica são da seção Fotos Antigas, do montesclaros.com, que podem ser consultadas. As duas primeiras revelam aspectos da rua Dr. Santos, antiga rua Bocaiúva, foco da presente crônica. A terceira foto é panorâmica da cidade. Todas três são posteriores a estas recordações, extraordinárias, da escritora Ruth Tupinambá. O que a memorialista conta, com riqueza de detalhes de uma prodigiosa memória, é ainda anterior a estes registros fotográficos. Mais e mais pessoas se referem a dona Ruth como a Cora Coralina de M. Claros, referência à poeta goiana)

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