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Mensagem: NO TEMPO DOS LOBISOMENS<br><br>Durante o dia éramos sete a pintar e a fazer todas as traquinagens possíveis às crianças sadias e fortes, criadas completamente em liberdade fora da ´ordenação´ das perseguidoras babás.<br>Mamãe, coitada, ocupada no afã de dona de casa sem empregada, não podia conosco, e dizia quando a ´pintação´ chegava ao auge:<br>- A noite vocês vão ver o lobisomem. Ele sempre aparece aos meninos mal criados e desobedientes, vocês vão ver!<br>Nós continuávamos subindo nas mangueiras e fazendo ´peito de pomba´ nos altos galhos, treinando para o nosso circo e pouco ligando para sua aflição. Mas, à noite, quando ia me deitar, era hora do arrependimento, e com remorso me lembrava da sua ´profecia”...<br>E já deitada, lá no meu quarto, eu pedia bênção, gritando, como todos os dias e esperava que ela me perdoasse.<br>- “Bênça, mãe. Nossa Senhora nos dê uma boa noite, eu vejo?”<br>Esta frase resumia toda a angústia e inquietude de uma alma infantil presa às garras da superstição e da crendice com que fora criada.<br>Deitada, com o cobertor cobrindo-me até a cabeça, suando às bicas, eu esperava a sentença da mamãe!<br>Repetia novamente:<br>- Bênça, mãe. Nossa Senhora nos dê Boa Noite, eu vejo? Esperava que ela dissesse um não, mas, mamãe se calava, de propósito, para me assustar.<br>A resposta tardava, e no sobradão da Rua Justino Câmara todos dormiam. O silêncio continuava e também meu medo aumentava. Já não tinha coragem de levantar o cobertor.<br>A resposta tardava e o silêncio naquela noite era assustador. Qualquer cousa, caiu lá na cozinha, fazendo um barulhão, talvez uma panela mal pendurada... Logo depois uma batida forte de porta, talvez tocada pelo vento, um ranger de assoalho sob pisadas fortes, e de vez em quando, um assovio longo e distante...<br>Apurava o ouvido e o coração batia apressadamente. Outros sons surgiam, aos milhares, e me assombravam. A cachorrada, na rua, começava a latir, todos ao mesmo tempo, correndo e rosnando, perseguindo um animal qualquer. Que medo:<br>- Que será, meu Deus?<br>Naquele tempo, cidade escura, sem movimento e sem policiamento, dava margem às assombrações, superstições e crendices.<br>Aí então eu me lembrei de que estávamos na Quaresma e que era sexta-feira, pois, durante o dia, a mamãe privara-nos da carne, era dia de abstinência e jejum e, diziam, era também dia do lobisomem e ´mula-sem-cabeça´. <br>A perseguição continuava e eu já escutava o ´ronco´ forte do animal perseguido e ´acuado´. Do bequinho estreito e mal calçado entre as casas do Augustão e Siô Crispim (antigo dentista), na rua Cel. Celestino, bem em frente ao meu sobrado, eu pressentia que o ´tal´ ia aparecer. Era o beco mal assombrado, era o beco do ´lobisomem´.<br>E agora eu tinha a certeza. Era o homem que virava ´lobisomem´, nas sextas-feiras, e corria perseguido pela cachorrada que enchia as ruas desertas e escuras, até altas madrugadas. Todos conheciam a velha história: Ventura, um mendigo muito conhecido em nossa cidade, virava lobisomem, e quando chegava a Quaresma, a curiosidade de todos aumentava e os boatos surgiam.<br>Alguém afirmara ter visto um fiapo de baêta vermelha preso em seus dentes amarelos e grandes, vestígio de seus ataques noturnos.<br>E naquele momento eu procurava recordar sua cara, quando batia em minha Porta pedindo esmola, durante a semana.<br>- ´Uma esmolinha pelo amor de Deus, dona”.<br>Nesta hora eu ficava embebida olhando aquele velho baixote,<br>gorducho e descalço, com várias capangas penduradas dos dois lados, presas aos ombros, onde ia colocando cuidadosamente separados o feijão, o arroz, a farinha e as muchibas de carne enroladas em papéis sujos, que ganhava de porta em porta. O olhar embaciado de quem pouco ou nada enxerga, num rosto de um amarelão doentio, onde barbas sempre crescidas, dentes grandes e amarelos davam-lhe aspecto de alma do outro mundo.<br>Um pretinho de cabeça pelada e muito esperto servia-lhe de guia, andando à sua frente, estendendo-lhe a ponta de um bastão liso onde ele segurava para não tropeçar... e assim ele percorria a cidade. Lá em casa eu não perdia sua passagem, e eu mesma levava a esmola só para reparar bem o ´Ventura´.<br>- Será que ele vira mesmo ´lobisomem´, mamãe?<br>- ´Vira sim. Ele deita na cama dos porcos e lá se transforma num enorme porco com cara de gente, deixando suas roupas no chiqueiro´.<br>Meu medo cresceu quando me lembrei que, bem perto, tinha um chiqueiro, em casa do Siô Chico Baiano, na ´Rua dos Marimbondos´ (hoje Cel. Altino de Freitas) e que Dona Luiza tinha sempre um porquinho para aproveitar as lavagens (restos de comida).<br>Tinha vontade de me levantar, chegar à janela e espiar o bequinho, mas, a mamãe dizia que o lobisomem advinha e, se alguém olhava, ele não aparecia.<br>Continuava ouvindo a cachorrada desesperada, latindo ferozmente, e os roncos do animal acuado cada vez mais se aproximavam da entrada do beco.<br>Meu Deus, que medo! A janela estava ali perto e aberta por causa do calor. O sono desaparecera por completo, só para mim, pois escutava o papai roncando, no quarto vizinho, num sono pesado, depois de um dia de trabalho e fadiga.<br> Ao meu lado, minha companheira de quarto, também ressonava tranqüilamente. Só eu sofria!<br>Revia o rosto da mamãe, aflita, pedindo-nos para não fazermos ´mágicas´ nos galhos das árvores, e pensava não desobedecêla, pois aquilo era castigo.<br>Não resistindo mais, gritei com força, já chorando!<br>- Eu vejo, ma... mãe! O lobisomem vai me aparecer, vai por a cara na minha janela!!!<br>- Você não verá nada, minha filha, pode dormir.<br>Quanta segurança dava aquela frase. Era a tábua da salvação. Nesta hora eu achava que sua palavra era o ´veredicto´, poderia dormir tranqüilamente.<br>Não ouviria mais nada e, no dia seguinte, eu poderia contar à meninada da Rua de Baixo (meus vizinhos) que vira o ´Ventura´ transformado em lobisomem mordendo a cachorrada no Beco mal assombrado do Augustão...
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