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montesclaros.com - Ano 25 - quarta-feira, 25 de setembro de 2024
 

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Mensagem: A PARTIDA

Agosto de 1928.
Uma locomotiva barulhenta, esbaforida, soltava vapor e apitava longamente. Um velho de boné e roupa azul marinho, lá na frente, sacudia a bandeirinha branca anunciando sua partida. Uma campainha estridente, forte se fez ouvir. Os passageiros se despediam, mais uma vez, dos seus familiares, movimentando-se na plataforma estreita. Uma mocinha amorosa, encolhida na última janela apertava mais uma vez a forte mão entre as suas... Papai, muito sizudo, abraçou-me dizendo: ´Muito juízo, seja boazinha, que lhe trarei um presente´.
Senti, naquele momento, uma agonia nunca antes sentida, tive vontade de que nossa cidade nunca tivesse os ´trens de ferro´ que levam para longe nossas pessoas queridas. E naquela plataforma estreita, de uma cidade escura, eu chorei vendo o trem se afastar lentamente, a princípio, depois mais rapidamente, e se encobriu na curva, deixando apenas o som lamurioso do seu apito...
Naquela noite, não era só o papai que viajara. Com ele foi­se também meu irmão Cassy, o mais velho e mais querido, e a quem eu tanto me afeiçoara. Ele era um encanto de criatura, adulava-me como se eu fosse um nenê e tinha sempre um presentinho para mim. Coisas simples assim como caixinhas de papelão bem coloridas, de vários tamanhos, redondinhas ou quadradas (de colocar cápsulas e pílulas nas farmácias daquele tempo) ,latinhas de amostras de pó-de-arroz ´Lady´, lápis de propaganda, maçã (naquele tempo era fruta rara), e tudo o que ele conseguia com os companheiros e que achava interessante e que criança adora ´colecionar´.
Naquela noite eu não entendera o porquê da sua partida e nem a aceitava. Na véspera, ainda à mesa de jantar, o papai, taciturno, pensativo, nos anunciava sua decisão: era o mais velho, já estava se tornando um rapazinho e deveria ir estudar fora numa grande cidade civilizada, um colégio gratuito que arranjara graças à influência de um amigo importante.
Aquela notícia, após o jantar, foi como se tivessem servido uma fruta amarga como sobremesa. Fiquei acabrunhada e, de soslaio, olhei para o Cassy, assentado, muito sério, ao lado do papai. E, como eu, todos o olharam, ao mesmo tempo, procurando descobrir em seu rosto a reação daquela ´bomba´, jogada à ´queima-roupa´. Ele estava firme, não disse nada. Nem um gesto deixou escapar, apenas franziu a testa, juntando as sobrancelhas, gesto seu, muito natural quando estava preocupado.
Percebi que a notícia não lhe agradara, mas que fazer? Naquele tempo, filho nenhum ousaria contradizer o pai, e ainda mais uma criança de 13 anos, ela nunca teria razão!
O ambiente, de repente, ficou carregado, o que não era novidade, pois o papai nunca nos deixava à vontade durante as refeições. Era a hora dos sermões e das célebres regras de civilidade e ´bom tom´ que todas as crianças detestam.
As batatinhas fritas e as peles torradas, tão apetitosas, ficavam no canto do prato e se esfriavam, intactas, à espera de que o papai desse as costas para podermos estralá-las nos dentes. Que alívio! Felizmente, era irrequieto e sempre se levantava primeiro. Aí nos aproveitávamos e dávamos rédeas aos nosso apetite e à nossa língua! Era a hora mais gostosa e movimentada; cada qual queria contar uma novidade e planejar brincadeiras. Resolver se iria à aula ou inventar uma desculpa para matá-la, anunciando a mamãe uma dor de cabeça ou de dente...
Mas, naquele dia foi meu irmão quem se levantou primeiro, não esperando a retirada de papai. Estava murcho como se alguém lhe tivesse atirado um balde de água gelada. Ele que tanto apreciava as ´chacrinhas” e ´fofocas`´ nesta hora! Todos ficaram sem graça...
E naquela noite o vi, com desapontamento, recolher-se primeiro ao seu quarto. Iria viajar no dia seguinte, para muito longe e ignorava o que o esperava.
Hoje, isto não é nada. Os jovens vão até ao exterior como se estivessem indo ali mesmo, numa cidade vizinha. Mas, naquele tempo, a perspectiva de uma viagem, de repente, desorientava qualquer criança. Ser arrancado do seio da família para um lugar desconhecido, era ´dose para leão´.
Saí atrás dele, fui até seu quarto. Ele estava debruçado à janela e olhava para nosso quintal ensombreado pelas enormes árvores frutíferas, e vi que estava triste. Talvez pensasse: ´Quando as primeiras mangas amadurecerem, estarei longe. Não ouvirei a algazarra dos passarinhos insatisfeitos bicando todas as frutas mais belas e maduras e dos mais altos galhos. Não estarei aqui para apreciar as primeiras jabuticabas. Não estarei aqui tão pouco, para ajudar a mamãe subindo em todos os galhos escolhendo as melhores goiabas para as famosas geléias e compotas´... Talvez meu irmão, com tristeza, pensasse em tudo isto e eu advinhava a razão da sua melancolia.
Era tão chocante aquele momento, aquela contemplação! Era patente o pesar que sentia ao separar-se daquelas coisas tão queridas, destes pequeninos ´nadas´ quotidianos e que são nossa infância, nossa vida. Tentei consolá-lo, mas não consegui. Qualquer desculpa, naquele momento, parecera-me tão ridícula e minha garganta se apertava cada vez mais, ao contemplá-lo.
Saí do quarto deixando-o sozinho, pois era o que ele realmen­te desejava... despedir-se de tudo.
Mais tarde, no silêncio da noite, ouvi seus passos no quintal. Ia se privar do aconchego da família, daquela camaradagem tão amiga e gostosa que sempre existiu entre os sete irmãos... Era um adeus aos seus brinquedos, um ponto final a sua infância, tão feliz, em troca das obrigações impostas por um colégio gratuito entre desconhecidos...
Deixar a namoradinha, morena bonita, desabrochando-se na adolescência, com grandes olhos que já o fascinavam...
Agora que a campainha tocava estridentemente anunciando a hora das despedidas, eu me recordava de tudo e, abraçando meu irmão, chorei com vontade. Aquela campainha, nunca poderei esquecê-la, era como uma fina lâmina que me atravessava o coração.
´Não chore, querida, disse-me Cassy, carinhosamente. Vai dar tudo certo, eu já estou muito grande, preciso estudar e trabalhar para ajudar o papai. Lá não terei tempo de pegar passarinhos. Fique com a minha arapuca de taquara envernizada que o meu padrinho me deu e os meus anzóis de estimação... eu sei que você sempre os desejou´...
Era verdade. Sempre os desejara, e mais de uma vez conseguira usá-los às escondidas, quando íamos, aos domingos, passear na chácara do tio Pedro, na Malhada dos Santos Reis, com uma grande turma pescar e pegar passarinhos... Mas, naquele momento, e por aquele preço, eu preferia nunca possuí-los!
- Eu guardarei tudo até você voltar - foi o que consegui dizer-lhe.
Papai puxou-o para dentro, e o trem, resfolegante, apressado
se arrancou fazendo rangir todos aqueles ferros, rodas e correntes, sumindo na curva, ficando apenas, no ar, um apito longo, lamurioso como um triste adeus...

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