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Mensagem: LUCY VELOSO Montes Claros dos anos 50, na qual eu vivi, era ainda uma cidade pequena. Ausência de violência, amizade entre as pessoas, mais verde em seus arredores. Cheiro de jasmim, dama da noite e manacá. Árvores frutíferas e hortas nos quintais. Cheiro de lança perfume nos carnavais, portas das casas abertas... Hoje quero entrar em uma casa que foi muito especial para mim e trazer de volta sua dona, Lucy Veloso. A saudade é um sentimento mágico. Ela transforma coisas simples e comuns em lembranças cheias de encanto. Lucy nasceu em Montes Claros, em 1918 e faleceu em 1960. Viveu apenas 42 anos, pouco em quantidade, mas esses foram anos intensos em qualidade, pois ela conseguia transformar seu dia a dia, em dias especiais, encantadores. No seu coração era sempre verão. O tempo estava sempre bom, era feliz, a vida era boa para ela. Quando relembro Lucy, três imagens brotam mais fortes da memória: sua casa de impecável limpeza, seu amor aos livros e ao cinema. Cuidar do jardim, ler um romance de amor, assistir um filme emocionante reabastecia sua alegria, seu vigor, fazendo-a amar cada vez mais a vida. Laços de afetos, sólida amizade ligavam Lucy à minha família, em especial à Tia Tê, de quem era grande amiga. Ao adentrar a portinhola de entrada da sua casa, o jardim florido nos acolhia, com seus canteiros exuberantes. Recebendo elogios por presentear-nos com tanta beleza, Lucy respondia rindo, com aquela risada que vinha lá de dentro, lá do seu coração: não basta amar as plantas, quem quer ter um jardim bonito, tem que cuidar do que plantou. Planta é como gente, gosta de carinho e atenção e às vezes até de colo de mãe. Do lado direito ficava o caramanchão, onde enroscava a trepadeira; um verdadeiro recanto parra relaxar, o banco onde sentávamos e jogávamos conversa fora escutando o trinar dos passarinhos. Sua casa parecia uma casa de boneca, de contos de fadas. Pequenos detalhes faziam a diferença. Prateleiras na parede com bibelôs de porcelana, “biscuit”, quadros de paisagens bucólicas; sobre as camas colchas de crochê ou de retalhos; vasos com flores naturais enfeitavam mesas de acordo com a floração. Ervilhas de cheiro se era setembro, rosas o ano todo, hortênsias em fevereiro. O chão brilhava de tão limpo! A casa era o reflexo de sua alma. Tinha cheiros que se incorporaram à minha infância e adolescência, e que voltavam muitas vezes nos lugares mais inesperados. Como uma característica da família, sua mesa era compartilhada por seus amigos. Em especial, o almoço de domingo. Era feito com o maior carinho, um momento de alegria, de celebração da vida. Todas as nossas tristezas acabavam ao redor daquela mesa; hoje, a ditadura do corpo nem isso permite. Eu era uma adolescente de 12 para 13 anos. A distância cronológica que me separava de Lucy não era um fosso entre nós, porque eu já amava os livros, as flores e o cinema tanto quanto ela. Trocávamos romances, descobrimos juntas a liberdade que se conquista com a leitura, viajamos pelo mundo, incorporamos personagens. Lembro-me quando começamos a ler a obra do escritor inglês Sommerset Maughan. Foi uma fascinação! Viajamos para os mares do sul, Ceilão, Java, Índia. Lugares exóticos, tão diferentes do prosaico de nossas vidas. Conhecemos o imperialismo e a arrogância britânica, a submissão dos colonizados e excluídos. Cronnin foi outra paixão! Os romances “Cidadela” e “O castelo do homem sem alma” foram um marco em nossas vidas. Mas, o que mais impressionava em Lucy era sua memória prodigiosa. Leu o romance “Rebeca”, de Daphne du Maurieu, várias vezes e de cor dizia páginas e páginas. Com sua voz calma e cantada começava: “A noite passada sonhei que tinha ido novamente a Manderley. Pareceu-me ter ficado por algum tempo diante do portão de ferro, fechado a cadeado. Chamei no meu sonho pelo porteiro; não obtive resposta. Espiando com atenção pelos varões ferrugentos, vi que a portaria estava deserta. Nenhuma fumaça na chaminé, as janelinhas se abriam numa atitude de tristeza infinda”... O cinema também nos irmanava; íamos sempre. Nas tardes de sábado ou domingo, Tia Tê e eu a esperávamos. Chegava elegante no seu “trailler” de linho branco, com debrum azul-marinho, sapato de salto alto bicolor, sua marca registrada, realçando suas pernas bonitas e bem torneadas. Voltávamos felizes comentando os filmes, os personagens e fazendo planos para algum dia conhecermos Paris, Roma, Londres; o interior da Inglaterra com suas casas senhoriais, os jardins e os gramados descritos nos livros e filmes que assistíamos. “Casablanca” foi assistido muitas vezes. Era para nós o melhor e mais lindo filme de todos os tempos (aliás, continua sendo para mim). A beleza deslumbrante de Ingrid Bergman, o charme, a classe e a sensualidade de Humphrey Bogart, o fascínio de Paris e o cosmopolita Nick’s Bar, onde Sam tocava “As time goes by”, me trazem Lucy para junto de mim, todas as vezes que revejo este filme. Lucy foi convocada muito cedo pelo Senhor, para habitar outras paragens. Acho que Ele precisou de uma pessoa perfeita para cuidar da sua casa, dos seus jardins, dos seus livros. Tenho certeza de que ela está feliz, passeando nas alamedas, nos gramados verdejantes em companhia das irmãs Brönte, Charlote e Emily. Conversando com Cronnin, Sommerset Maughan, Margareth Mitchel autora do “E o vento levou...”, Daphne du Maurieu... Como sinto falta desse tempo; de minha querida Lucy, presença ausente, ausência sempre presente. Mas, como escreveu Manuel Bandeira, “A saudade é melhor do que a felicidade, porque a saudade é a lembrança das coisas boas, felizes”. Carmen Netto Victória
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