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montesclaros.com - Ano 25 - segunda-feira, 23 de setembro de 2024
 

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Mensagem: FELIZ ANIVERSÁRIO, MAMÃE!

A cidade antiga, de sobradões sombrios, dormia tranqüilamente, num silêncio profundo, quase assustador, naquela madrugada de 14 de julho de 1885.
O “Largo de Baixo”, quase totalmente escuro, onde somente a lua de vez em quando, rasgando as nuvens plúmbeas, se atrevia olhar, cá em baixo, espalhando indiscretamente sua luz sobre os telhados coloniais enegrecidos pelo tempo.
Ao longe, um galo, com seu canto triste, anunciava outro dia, e aos poucos uns e outros respondiam àquele toque de alvorada, formando uma sinfonia bonita, de vários tons, quebrando a monotonia daquela madrugada.
Tudo parecia normal naquela cidade adormecida, inocente e linda como uma garota adolescente.
O “Largo de Baixo” (hoje Praça Doutor Chaves) também está dormindo. Os sobradões de luzes apagadas são apenas manchas brancas, estáticas, silenciosas, onde os senhores descansam das lutas do quotidiano.
Mas há um movimento diferente, estranho, num daqueles sobrados ...
Contrastando com o silêncio e a calma dos que dormem, há no sobrado do meu avô Coronel Casimiro Mendonça (hoje pertencente à viúva Hildebrando Mendes) muita apreensão e expectativa:
É que dona Josefina Mendonça está “incomodada”. As criadas da casa se movimentam cautelosamente para não despertar as crianças e se deslocam para a parte da cozinha grande, onde um fogão a lenha crepita, soltando fagulhas fortes, esquentando a água para o banho da patroa, recomendação importante da parteira.
Seu Casimira toma café quente, veste seu capote de lã grossa, desce as escadas apressadamente, atravessa o largo deserto em direção à rua Coronel Celestino, onde mora a parteira.
O vento frio bate em seu rosto bonito, de traços finos, sombreados pela barba e pelo bigode grisalhos. Ele vai preocupado pois siá Josefina não era mulher ´mofina´, fora sempre valente e corajosa nos outros partos, e agora parecia esmorecida. Pelo caminho vai pensando na dedicação e na bondade de sua companheira, sente medo de perdê-la e apressa mais os passos ..
A cidade era tão sem recursos médicos! Não havia maternidade, nenhuma assepsia, nem medicamentos adequados. Deus, na sua infinita misericórdia, socorria todos nas horas difíceis e o milagre acontecia. E assim nasciam todas as crianças.
A parteira acorda assustada, às primeiras batidas em sua porta. Já estava habituada a esses chamados, pois os bebês gostam das madrugadas, e quando a ´lua era forte´, ela já dormia vestida, ´de prontidão´.
Seu Casimiro quase nem podia falar, mas ela entendeu. Apanhou seu chale a tesoura para cortar o umbigo, o pó de fumo e o azeite para os curativos. Voltaram quase correndo, subiram as escadas, pois ´lua forte´ não deixava esperar muito.
Tudo pronto. Siá Josefina já tomara seu banho esperto e, recostada na cama, agüenta as dores sem gemido. Precisa ser forte. A parteira, de grande experiência, prepara uma cápsula de quinina e o organismo reage prontamente.
Seu Casimira passeia nervoso de um lado para outro, na enorme sala de jantar, fumando seu cigarro de palha, e bebe uma ´pinga´ para esquentar a situação.
De repente, ouve-se um choro forte e a parteira triunfante diz para seu Casimiro:
- ´É uma moça forte e bonita ... mas vem mais gente por aí ... ´
Ele fica mais afobado ainda e corre para o quarto. A parteira, com ares de sabedoria, massageia o ventre da parturiente e novamente ouve-se um choro forte que retumba em todo o sobrado, anunciando que outra criança viera ao mundo.
Gêmeas! Exclamou meu avô pegando as duas meninas embrulhadas, ainda, em lençóis. E ajoelhando na beirada da cama, abraça minha avó, dizendo-lhe: ´Deus nos deu duas mocinhas lindas. Ele as abençoará´.
O dia já amanhecia bonito, e com ele, muita alegria e felicidade chegava àquele sobrado do Largo de Baixo, onde as duas Bi e Dona (seus apelidos), passaram sua infância e mocidade, ao lado de mais seis irmãos.
As duas cresciam fortes e saudáveis, para alegria do casal, e as visitas ao sobrado se multiplicavam, desejosas de conhecê-las.
Chegaram à adolescência, cada vez mais parecidas em tudo: o mesmo corpo, a mesma cor da pele e dos cabelos, os mesmos olhos grandes e sonhadores, o mesmo gênio, tornando-se duas moças bonitas e cortejadas. Eram tão parecidas, que às vezes a semelhança provocava confusões. Quando já mocinhas, chegavam à janela do sobrado, o namorado (só de longe) não sabia se era Bi ou se era Dona. Até o papai contava que, já noivo, muitas vezes se enganara. Naquela época, não eram permitidas intimidades, tudo era na base da distância, e ficava difícil de identificar a namorada.
As duas ganhavam muitas serenatas. Nas noites enluaradas, o violão choroso acordava as gêmeas e as modinhas apaixonadas enchiam aquele largo silencioso, numa inocente declaração de amor.
Um certo poeta dedicou-lhes uma modinha assim:
´São duas flores unidas
São duas rosas nascidas Talvez no mesmo arrebol
Vivendo do mesmo galho
Da mesma gota de orvalho
Do mesmo raio de sol´.
Pena que eu não me lembro mais dos outros versos. Mamãe também já se esqueceu, faz tantos anos que contou-me estas histórias. Só sabe que eram cantados pelo poeta João Chaves, nas noites enluaradas. Era naquele tempo um jovem bonito e grande seresteiro. Ninguém sabe se ele cantava os versos, ou se ´cantava´ as gêmeas ...
Vendo-a hoje, mamãe, tão velhinha, com 100 anos, todas estas lembranças me vêm à mente. Você era tão alegre, tão inteligente! Você conversava tanto comigo, e contou-me tantas histórias, tantas passagens de sua vida! Foi tão bonito!
Sua infância, sua adolescência, juventude e mocidade, ao lado das outras irmãs, tia Joaquina, tia Joana e tia Lica. Você e tia Bi eram tão amigas e inseparáveis! Até muitos anos depois de casadas, com netos e bisnetos, apesar dos afazeres, as duas conversavam horas seguidas. Era uma festa quando se encontravam. Marcavam, com antecedência a visita e neste dia se distraíam relembrando os bons tempos da mocidade.
Você falou-me, eu me lembro, das velhas escravas de sua casa e que continuavam com o vovô mesmo depois da abolição. A velha Martha, que era doceira afamada, sabia contar histórias e fazer bonecas de pano, de todos os tipos: brancas, morenas, pretas e mulatas, numa variedade incrível.
A Catarina, muito caprichosa com as roupas das ´Sinhazinhas´, tudo engomado e muito bem lavado. As anáguas célebres daquele tempo ficavam por sua conta, e eram anáguas para seis mulheres ... com muita renda e babados, mas ela caprichava.
A Madalena, que tomava conta dos menores, gostava de ´banhá-los´ com sabonete bem cheiroso e estava sempre com raminhos verdes na mão, benzendo-os de ´quebranto´ e ´mau olhado´, Minha avó achava muita graça, ria dizendo-lhe: ´Pode benzê-los, Madalena, reza e amor não fazem mal a ninguém´, ..
O Julião era cria do meu avô e lá casou-se e criou uma grande família. Morava nos fundos do sobrado, era arreeiro da tropa e amigo fiel do patrão companheiro valente das caçadas, e contava que pegava onça pelo focinho. Dos passeios com seus pais, das viagens à lapa de Senhor Bom Jesus, quando vocês, rechonchudas e refesteladas nos silhões novos e bonitos que o vovô fazia todo ano, para as filhas e para a vovó, e também as selas incrementadas para os filhos varões, com as belas arriatas de prata. Naquele tempo era um escândalo uma mulher se escanchar, abrindo as pernas numa sela. Isto era só para macho, dizia meu avô.
A viagem à Lapa era demorada, meu avô não tinha pressa, parando em lugares pitorescos, de preferência ã beira dos rios ou córregos. Armavam as barracas, soltavam os animais e acendiam grandes fogueiras por causa das onças. Os irmãos mais novos tio João e tio Pedro, brincavam de índio, tomavam banho nos rios, pescavam piabinhas com peneira, enquanto a vovó preparava arroz – com - carne, assava carne no espeto e fazia doces e biscoitos fritos. As escravas ajudavam em tudo, tomando também conta dos menores.
Meu avô gostava de fartura, e dizia sempre: ´Morra o luxo e viva o bucho´. Portanto, levava as barracas cheias de carne de dois pelos, toucinho, café, rapadura, muito queijo e requeijão, mantimentos, muita banana, laranja e melancia para a meninada.
Todos os anos meu avô fazia essa romaria, carregando consigo várias famílias amigas e parentas com toda a despesa por sua conta.
Era promessa e grande acontecimento na cidade.
Mamãe contou-me tantas histórias, destas idas à Lapa, com este grande acompanhamento e muita coisa acontecia. As onças que meu avô matava pelo caminho, as caçadas com os companheiros, e que minha avó preparava com perfeição as carnes de paca, capivara, veado, tatu e outros animais.
À noite, juntavam-se em volta da fogueira e os escravos contavam histórias de lobisomem, mula-sem-cabeça, saci-pererê, e as peripécias ´fantásticas´ das caçadas. Cada qual queria ser mais esperto e valente na hora de ´acuar´ a onça.
Era tudo muito divertido, e meu avô vibrava com aqueles amigos simples e sinceros.
Você contou-me, também, do seu noivado, quando meu pai, corria Cavalhada nas Festas de Agosto. Da sua grande emoção quando ele tirou a ´argolinha´ e, oferecendo-a do alto da janela do sobrado, você colocou em sua lança a grinalda de flores de laranjeira e o véu de noiva. Foi uma história linda e romântica. Meu pai se apaixonando pela menina do sobrado. Ele tinha apenas 18 anos. Recém chegado do Seminário de Diamantina, em férias, conheceu você e largou para sempre a batina ...
Mas o coronel Casimiro Mendonça entendeu a paixão dos dois. Casaram cedo, e os filhos vieram logo. ~ramos sete e vocês tiveram muito trabalho e dificuldades mas nos deram muito amor e carinho.
Sua bondade e paciência, seu desprendimento pelas coisas materiais, mamãe, nos fizeram entender melhor a vida e aceitar os revezes sem revoltas. Sua doçura para com todos fez de você uma pessoa muito querida.
Em nenhum momento de minha vida eu me lembro de tê-la visto blasfemar ou se desesperar por qualquer coisa. E pelos caminhos de sua vida, você não encontrou só flores, houve espinhos, também, e você soube arrancá-los sem contudo ferir alguém ...
Hoje, mamãe, é seu aniversário. Cem anos! É uma grande graça de Deus tê-la ainda a meu lado tranqüila como sempre foi, em todos os momentos de sua vida.
Eu sinto, ainda hoje, a influência benfazeja de seu espírito e de seu coração, puros.
De joelhos, beijo-lhe as santas mãos que tantas vezes alisaram meus cabelos e acariciaram minhas faces.
Eu estou chorando mamãe, mas é de felicidade, porque você está ainda aqui conosco. Você está velhinha, é verdade, mas seu coração tão puro, como o da mais inocente criança, é tão forte como o amor de Jesus, a proteger seus filhos!
Mamãe, você é um símbolo para nós. Símbolo de amor e perfeição, o nosso eterno anjo da guarda.

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