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montesclaros.com - Ano 25 - domingo, 24 de novembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 14)

JOGO DE PÔQUER

De vez em quando, amigos de meu pai combinavam com ele e faziam uma sessão de pôquer, após o fechamento da venda.
O grupo se reunia por volta das oito horas da noite, ou pouco mais tarde. Quando saía o último freguês, meu pai mandava-me fechar as portas da frente e colocar mais carbureto no gasômetro, para garantir boa iluminação até as dez ou onze horas da noite. Enquanto eles preparavam a mesa para o jogo eu ia à sala de jantar apanhar copos limpos para eles beberem cerveja Brahma Rainha, ao natural, pois por aquelas bandas nunca se ouvira falar em geladeira.
Eu gostava demais de assistir a essas partidas de pôquer. Os parceiros eram pessoas bem humoradas, que gostavam de contar piadas e rir. Dois deles eram jogadores tarimbados. Já haviam jogado em São Paulo e contavam casos engraçados, muito ao agrado de minha aguçada curiosidade.
Mas meu pai proibia minha presença. Terminado o meu trabalho eu devia retirar-me. Todavia, a curiosidade em mim era maior do que o dever de cumprir a ordenação paterna. Eu sempre encontrava um jeito de ir ficando, em qualquer pequeno espaço que a visão de meu pai não alcançava.
Certa ocasião, já tarde da noite, muito depois de terminado o jogo, minha mãe deu por falta de mim. Foi um tumulto em casa. Todos se puseram a procurar-me. “Teria fugido de casa? Teria caído na cisterna?” Eram as perguntas que se faziam. Até que minha mãe, movida por sua intuição tapuia, apanhou uma lamparina e foi encontrar-me dormindo a sono solto sobre um caixote que servia de depósito de papel de embrulhos, sob o balcão da venda.
Em outra ocasião, lá pelas tantas, um dos parceiros no jogo, o senhor Stênio Garcia de Paiva, um alegre e brilhante bon vivant, filho de importante empresário de Belo Horizonte, quis lembrar-se de antiga modinha que conhecera em Diamantina. Desde suas primeiras informações, eu, de meu esconderijo, atinei com a resposta. Mas os adultos - isso eu e meus irmãos sempre soubemos - são uns tapados. Só davam palpites errados.
No decurso do jogo, pintavam os mais diferentes assuntos. No caso da modinha, após umas duas jogadas, o sr. Stênio insistiu:
- Ora, pessoal, é uma modinha muito bonita e muito conhecida. Tenho certeza de que vocês a conhecem. Há uma história muito interessante, ligada a essa modinha, que eu quero contar a vocês. Mas antes tenho de me lembrar da modinha. É uma em que o camarada apela para a namorada vir ouvi-lo.
Mas, com todo o respeito, a turma era burrinha mesmo. Não acertava um palpite. E a cada vez que o sr. Stênio voltava ao assunto eu tremia de impaciência e trincava os dentes para evitar que gritasse minha opinião. Mas ninguém é de ferro. Quando a pergunta mais uma vez foi feita, não pude me conter. E saindo de minha toca aproximei-me do sr. Stênio e falei assim:
– Olha, seu Stênio, eu acho que a modinha é esta - E com a voz desafinada que Deus me deu, comecei a cantar:


Acorda minha beleza,
descerra a janela tua,
espalha-se a luz da lua
pela poética devesa.

O sr. Stênio era um extrovertido. Vibrou. Abraçou-me, lascou-me um beijo na testa. Os parceiros também gostaram e me abraçaram sorrindo.
Mas houve uma exceção. Meu pai. Vendo-me surgir do nada, contrariando sua determinação, fechou a cara e foi ríspido:
– Você perdeu boa oportunidade de ficar calado. Sua mãe o está chamando lá dentro ...
Eu pus o rabo entre as pernas, como se diz, e fui saindo de cabeça baixa, murcho, sem graça, igual a cachorro que fez “malfeito” na igreja...

ADENDO

Um dia, nos anos 60, encontrava-me em meu escritório, no centro da cidade, quando se apresentou um cidadão idoso, da parte do jornal “Estado de Minas”.
Entregou-me o seu cartão mas eu já o havia reconhecido assim que transpôs a porta de entrada do escritório.
Deixei-o falar do trabalho que estava executando na cidade para o jornal.
Depois informei-o de que já o conhecia. E contei-lhe o caso do jogo de pôquer.
O bom homem se desfez em lágrimas.
Quando se recompôs convidei-o a participar de um encontro de seresteiros que aconteceria à noite, em minha casa.
Ele compareceu e em dado momento os seresteiros cantaram em sua homenagem, a meu pedido, a modinha pela qual demonstrara predileção naquela noite distante, entre amigos. Ele agradeceu comovido e retirando-se para uma mesa ao lado, escreveu e depois leu para os presentes o que abaixo vai transcrito, cujo original me entregou.

“Luiz de Paula, filho do querido Tico, homem paradoxal de bondade e severidade, que nós, na nossa ignorância e incompreensão tratávamos apenas no risco de nossa insatisfação. Mas que a ampulheta do tempo nos prostra hoje de joelhos em preces de gratidão.
Quantas vezes aquela bondade que não tive a graça de sentir como precisava, batia-me no ombro e na doçura da advertência e do conselho, dizia-me: senhor Stênio, o senhor tem uma bondosa esposa.
Sou esmoler da palavra que a emoção torna ainda mais difícil. Muita coisa desejaria falar ao seu coração terníssimo Luiz, e que você bondosamente e enternecidamente escutaria, mas não vou roubar aos seus amigos o encantamento destes momentos e no embaraço de pontualizar meu matraquear de velho, peço que me perdoem a inoportunidade do que não pude calar.
Obrigado a todos. Sinta, meu caro Luiz, meu abraço no seu coração.
Stênio Garcia de Paiva”


(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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