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montesclaros.com - Ano 25 - domingo, 24 de novembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 18)

O PRIMEIRO BEM DE CAPITAL

Foram tempos de muita saudade. Era tanta a saudade do povoado em que nasci e de minha gente, que me sentia febril. E sofria também pela falta de alguns trocados. O Mercado Municipal, nas manhãs de feira, aos sábados, exibia muita fartura de coisas apetitosas: pamonha, bolo de arroz, pé de moleque, biscoito frito, broas, e frutas diversas. Mas eu era vidrado mesmo era no refresco de tamarindo. Adoçado com rapadura e despejado num canecão de folha, sobre uma colherada de bicarbonato. Chamava-se moreninha e espumava até derramar pelas bordas do caneco. Era bom demais.
Às sextas-feiras havia sessão de seriados, às 8 horas da noite, no Cinema Montes Claros, do sr. Manoel Gomes. Lembro-me de alguns títulos. O Cavaleiro das Sombras. O Às de Espadas. Fantomas. No Arrastão da Vida.
Ganhar algum dinheiro era preciso. Foi daí que surgiu a idéia da caixa de engraxar. Feita com tábuas aproveitadas de caixões velhos. Não ficou bonita mas dava para começar. Saí à luta. A engraxada custava 200 réis. Gorjeta era coisa que não existia. Aos sábados eu saía de porta em porta, no centro da cidade. Com o provento do dia eu comprava o material que faltava. Aos domingos ia cedo para o ponto, na rua Simeão Ribeiro, na calçada ao lado do bar do senhor Brasiliano Ribeiro da Cruz, onde é hoje a Lanchonete Cristal. Por ali passavam as pessoas que iam às missas da 7 e das 9 horas, na Igreja Matriz.
Uma féria considerada boa alcançava três mil réis. Importância bastante para se começar o dia com um copo de caldo de cana comprado na Garapa do Sinval, e mais tarde um copo de coalhada. E para reabastecer a caixa, reservando parte para a aquisição de objetos de uso na escola e para ir ao seriado das sextas-feiras. E para um ou dois copos de moreninha.
A caixa de engraxar era um bem de que muito me orgulhava. Lembro-me de uma noite em que depois de conferir e guardar todo o material de trabalho, preparando-me para a faina do dia seguinte, enfiei as duas mãos no interior da caixa e com o olhar perdido nos longes fui apalpando as escovas, as latas de graxa, as flanelas de dar lustro, os vidros de tinta... Era tudo meu. Era meu patrimônio. Minha riqueza no mundo. Senti grande euforia. Um calor bom subindo pelo peito acima. Uma enorme satisfação por ter dentro daquela caixa, sob minhas mãos, tudo de que precisava para trabalhar e ganhar dinheiro.

COMPANHEIROS DE TRABALHO

Éramos mais ou menos oito engraxates naquele ponto da rua Simeão Ribeiro, na calçada rente ao muro do bar do senhor Brasiliano Ribeiro da Cruz, onde é hoje a Lanchonete Cristal.
Com o correr do tempo, a prática de futebol, no largo da igrejinha do Rosário, e o gosto pelo cinema nos tornaram companheiros e amigos.
Entre eles havia o Zé de sia Aninha, o Zezé Botão, que morava no largo da Igreja do Rosário, hoje praça Portugal. Foi o melhor driblador que já conheci, mesmo depois de adulto. Soube dele, mais tarde, na Polícia Militar, no posto de sargento. Outro muito bom de bola era o Antônio Carvalho, sobrinho do barbeiro Benvindo José de Carvalho. Havia também o Catarino, que morava longe, aos pés dos Morrinhos. Sobre ele escrevi um pouco mais, sob o título: RECADO A CATARINO.
O futebol e o cinema nos empolgavam.
Cinema, para nós, eram os filmes seriados, que se exibiam às sextas-feiras, no Cine Montes Claros, do sr. Manoel Gomes, pai do saudoso amigo José Gomes de Oliveira. Único da cidade. Passavam um primeiro filme, de “cow-boy”, de duas ou cinco partes, e em seguida vinha o seriado. Ficaram famosos: O As de Espadas e O Cavaleiro das Sombras, com William Desmond (o mocinho) e Albert Smith (o bandido). E Fantomas.
O cinema era mudo e se exibia parte por parte, com pequeno intervalo entre as partes. Projetavam a imagem e depois o letreiro, explicando o diálogo. Os tiros eram reconhecidos pela fumaça que saia dos canos das armas.
Quando vinha uma cena muito forçada - como, por exemplo, o “cow-boy” matando meia dúzia de bandidos, de uma só vez, ou o cavalo de Tom Mix dando um salto de 10 metros, a gente ouvia logo a exclamação do Catarino, a ecoar no escuro, vinda de algum lugar, nas galerias: Ô DESAJÊRO!
O CINEMA

Fora das aulas havia duas novidades muito gratas: a luz elétrica, iluminando a cidade à noite, e o cinema, às sextas-feiras, em filmes seriados de “western”.
Era ainda o cinema mudo. Mas havia música local, antes de começar a projeção, com a Professora Dulce Sarmento ao piano.
A entrada custava 1 mil réis, equivalente a 5 engraxadas.
Era sessão única, começando às 20:00 horas. Os “habitués”, como eram chamados os freqüentadores, pela “Gazeta do Norte”, começavam a chegar às 19:00 horas, atendendo ao chamado de uma estridente campainha, colocada na parede externa do prédio, cujo som se ouvia em todo o centro da cidade.
O cinema, com a inevitável espera para quem quisesse encontrar bons lugares, tornara-se local de namoro. E era de bom tom (como se dizia àquele tempo) o namorado ou marido oferecer revistas a seu par.
Os vendedores de revistas e caramelos circulavam diligentes, atentos aos chamados dos fregueses.
Quando a projeção ia começar, cessava o retinir da campainha externa e soava uma outra, de som mais fraco, localizada no alto da cabine de projeção. Avisando aos espectadores que a sessão ia ter início.
A projeção se fazia por partes, com intervalo entre uma e outra. As fitas de “cow- boys” compunham-se geralmente de 5 partes. Os seriados tinham 4 partes. E os dramas ou fitas de amor, como eram chamadas, e as comédias e fitas de guerra, eram estruturadas em 7 ou mais partes. Os “complementos”, que antecediam o programa principal, apresentavam uma ou duas partes.
Nos intervalos entre as partes muitos espectadores se levantavam para fumar junto às portas laterais e retornavam a seus lugares ao chamado da campainha interna.
A projeção produzia um ruído monótono e contínuo, que para muitos funcionava como o melhor dos soníferos.
Eram conhecidas na cidade algumas pessoas que iam ao cinema para desfrutarem de duas boas horas de sono.
A professora Dulce Sarmento executava o piano com maestria. Eu sempre tive pendor para a música e no cinema, ouvindo o piano, gravava com facilidade as melodias. E em casa de meus tios ia aprendendo as letras, com preferência para as canções que se adequavam à meu estado de espírito.
Recordo-me ainda de algumas dessas composições, especialmente de duas delas, que eu repetia principalmente quando me encontrava sozinho, curtindo a minha saudade.
Eram os tangos NUNCA MAIS e NELLY.
As letras não tinham muito a ver com meus sentimentos. Eram as melodias que se harmonizavam com minha saudade.
Começavam assim:

Ó nunca mais gozarei ao teu lado
deliciosos momentos de amor.
ou
Nelly, Nelly
quero adorar-te eternamente.

(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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