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montesclaros.com - Ano 25 - quarta-feira, 27 de novembro de 2024
 

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Mensagem: CAGAÇO Zé Maria era um frouxo, um cagão. Morria de medo de defunto, lobisomem, alma penada e tudo quanto é. Não dormia sozinho e fugia de escuridão. Tinha até o apelido de Borreira. Esse medo derivava da infância, desde quando os mais velhos na roça, à beira do fogo, em prosa, teciam medonhos e arrepiantes casos de fantasmas e assombração. O coitado, ao assuntar, trêmulo, tinha que se segurar pra não mijar nas calças. Os ditos amigos viviam dando sustos no infeliz. Ora o acordavam com lençóis brancos e máscaras apavorantes, ora assobiavam ao redor da sua casa, unhando a porta. Era medroso, mas prestativo, sem preguiça. Levava recados e embrulhos pra tudo quanto é canto. Na cidade, beirava os pontos dos fazendeiros, só no desejo de servir e cumprir ordens. Como era motorista cuidadoso, volta e meia era lembrado para levar uma vacina, um recado. Foi daí que aconteceu o caso. À-toa, bestando na praça Dr. Carlos, na Leiteria Celeste, Zé Maria foi convocado às pressas, no começo da noite, pra levar uns remédios pra um enfermo lá pras bandas das Contendas. Missão urgente e de responsabilidade graúda. Viajar à noite não era do seu agrado. Perguntou se não podia sair cedinho, de madrugadinha. Nada. Tinha que partir de imediato, logo após a manipulação dos medicamentos. Como não tinha como negar o pedido, saiu à caça de um companheiro de viagem. Foi ao posto de gasolina, não achou uma viva alma, passou nos botecos conhecidos e não arrumou ninguém para acompanhá-lo. O jeito foi partir já quase oito horas da noite, ressabiado. Ao pegar a estrada de terra, fingiu que não estava com medo. Cantarolou, assobiou, se esquivou dos pensamentos arrepiantes. Volta e meia vinha à cachola um temorzinho, um pavorzinho, e Zé Maria tentava pensar noutras coisas: no forró do Rio Seco ou nas meninas de Zé Coco. Depois dos Veados, hoje Nova Esperança, a lua saiu e Zé Maria lamentavelmente lembrou que mais à frente iria passar pelo mal-assombrado local do acidente da jardineira do Expresso Santana com o caminhão de pinga Claudionor. Aí, pronto, o cagaço veio, num crescente, à medida que relembrava os fatos. O acidente ocorreu no comecinho de 1970, em janeiro, numa curva, onde logo após se avistava Mirabela. Morreram 23 pessoas, a maioria carbonizada, irreconhecíveis. Alguns passageiros nunca foram identificados, pois até os documentos se queimaram. O motorista do caminhão fugiu, escafedeu-se. Só se apresentou dias mais tarde, derruído, arrasado. Já o motorista da jardineira foi um santo, mesmo gravemente ferido ajudou a salvar nove pessoas, vindo a falecer mais tarde no hospital Pio XII em Montes Claros. No pânico, Borreira desabafou: - Cruz Credo! Vale-me Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Logo eu que joguei no bicho as dezenas da placa 89 69 23 da jardineira e ganhei. Desconjure! Perdoe-me, meu Deus! Daí em diante, foi uma tremedeira só, que aumentava à medida que chegava perto do local do acidente. E o pior é que o intenso tremor pelo corpo inteiro se findava no pé que apertava o acelerador num ritmo inconsequente. O jeep ia aos solavancos no compasso dos trancos e arrancos de Borreira. Passava das 11 da noite, o pedaço de lua empinava no céu, quando entrou na tão sombria curva, onde no alto foi erguida uma pequena capela pelas vítimas do acidente. Aí, não teve jeito, entre bufas e tremores, o medo de Borreira tomou conta e deixou o carro morrer. Bateu a chave, nada. Bateu de novo e só um ré-rém rém fraquinho. Pronto, era o fim, estava entregue às almas do outro mundo. E elas viriam tomar satisfação da sua jogatina com a desgraça dos outros. – Oh, Meu Deus do Céu, me acode! Eu devolvo o dinheiro! Juro que doarei tudim pros parentes das vítimas do acidente. Nada. Não se ouvia nada. Só havia silêncio, frio e o breu abrandado pelo pedaço da lua. Minutos se passaram, até que surgiu do canto da estrada um cachorro grande, preto, imenso, estranhamente de orelhas brancas. Alvíssimas. Veio em direção do carro, parou, levantou serenamente suas patas dianteiras e as colocou no para-lama do lado do motorista. Deu uma cafungada, como se tivesse cheirando algo no motor, olhou para o cagão do Borreira, e perguntou: - Qual o problema? Estatelado, sem voz, sem saber se o que estava vendo era um cachorro ou um lobisomem, grunhiu fino: - O jeep encrencou e não quer pegar. O cachorrão, então, ordenou rouco: - Sai do carro e levanta o capô. Borreira, submisso, mudo, atendeu na maior ligeireza. - Abre o distribuidor, tira o platinado e o esfregue no para-choque do jeep. Lixa a ponta e coloque de volta no lugar. Borreira, amedrontado, fez direitinho, conforme mandado. - Agora, fecha o capô, entre no carro e bata a chave. Veja se o jeep pega. Mais que depressa, Borreira entrou no carro, virou a chave e vrummm... o motor pegou. No terror que estava, nem agradeceu ao cachorrão. Sentou o pé no acelerador e saiu jogando cascalho pra tudo quanto é lado. Nunca correu tanto na vida. Não sabe nem como fez as curvas até chegar à Mirabela. Entrou a mil na cidade, freando bruscamente na porta do único buteco aberto àquela hora. O dono que estava fechando o bar se assustou com aquele estouvamento e perguntou: - Que é isso companheiro, parece que você viu assombração? Borreira, com voz fina de mulher, desabafou: - Seu moço, seu moço, sabe aquela curva do acidente do caminhão de cachaça com o ônibus? Pois foi lá que o meu jeep quebrou. Eu estava sozinho, no desespero, a rezar pro mode de alguém me socorrer. E não é que por milagre ou assombração surgiu um cachorrão preto e me mandou lixar o platinado e o carro pegou. Nisso o dono do bar, dando-lhe um copo d’água, perguntou: - um cachorrão desmedido, preto, de orelhas brancas? Borreira, balançando a cabeça, confirmou: esse mesmo, esse mesmo! O butequeiro, então, arrematou: - É, rapaz, cê teve uma sorte danada! - Por que, por quê? - Porque aquele cachorro é um enganador. Um palpiteiro! Ele não entende porra nenhuma de mecânica.

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