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montesclaros.com - Ano 25 - quinta-feira, 25 de abril de 2024
 

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Mensagem: BAIXADA DA SANTA CASA 4ª PARTE Uma minúscula casa guinada para o poente, ao fundo do Colégio Imaculada, abrigava um casal germânico com três filhos louros, de olhos azuis. O mais velho, John, era colega de Fred, o do meio, Henry, meu colega, e o menor, que não lembro o nome, também estudava no colégio São José. A porta, sempre trancada, só era aberta parcialmente pela mãe quando batíamos para chamar os meninos para brincar. O pai nunca aparecia, não trabalhava nem saia de casa. Na fértil imaginação infantil, achávamos que o oculto e carrancudo alemão era da Gestapo e fugitivo da guerra. Suspeitávamos que fosse parceiro do famoso médico da SS nazista, Josef Mengele, “Anjo da Morte”, responsável pelo extermínio de judeus. Chegamos a montar uma carta denúncia para a embaixada de Israel, colando cuidadosamente palavra por palavra, recortadas de revistas e jornais, porém nunca conseguimos tirar uma foto do temido e misterioso oficial ariano para anexarmos como prova. Creio que só não efetivamos a delação por causa da amizade e afeição que tínhamos pelos três meninos. Ao lado do refúgio da família alemã era o dormitório do internato do Colégio Imaculada. Quase todas as semanas rapazes faziam serenata para galantear as resguardadas internas, entre elas, as belas Marina Queiroz e Suely Oliveira. O cortejo musical se estendia à casa da frente, morada das jovens donzelas Lopes: Teresinha, Maristela e Vicentina(19). No mesmo passeio em direção a Cel. Luiz Pires, residia o solitário e elegante Pedro Santana, mestre nas cadeiras de história, inglês e na norma culta, coloquial, sem gírias. Só saia de casa arrumado e bem penteado, sempre pronto para uma recepção. As duas casas vizinhas eram da família Dias. Na primeira, vivia Dona Aldinha, com suas filhas Ariana e Ana Verena e, na outra, Dona Nenzinha, que tinha uma filha chamada Neuza. Na direção a Rua Reginaldo Ribeiro, havia a casa de Dona Idália, mãe de João Capoteiro, Ernestina, Arlinda e Neném(20). Também na irmã Beata, lado oposto, vizinho do Seu Juquita Queiroz, morava Seu Geraldo Borges do Café Diplomata, pai de uns dez filhos(21). Findando a rua, à direita, em frente a casa da família Tralalá(22), ficava a casa do Seu Píndaro e Dona Ilda(23), que não fugindo à regra, tinham uma porção de filhas, todas bonitas, e um punhado de marmanjos, dois deles notívagos e músicos, Dandão e Davi. À esquerda, era a funerária da Santa Casa, onde fabricavam variados tipos de caixões para os defuntos da cidade. Uns eram acolchoados, nos quais Paulinho, meu irmão, quando matava aula, dormia. Marão o acordava cedo para ir ao Polivalente e ele se esquivava e corria para a funerária. Lá, destampava o caixão mais fofo, deitava e puxava a tampa e o ronco. Só deixava uma frestinha para respirar. Acordava ao final da aula gazeteada. Esperava desinchar a cara e chegava para almoçar. Existia um único caixão para os indigentes, construído com o fundo falso. O pobre morto só era agasalhado até o cemitério. Depois que o caixão descia na vala comum, o fundo era aberto e o coitado despejado. O féretro era recolhido e o defunto coberto de terra. Bai, bai... Na Santa Casa, trabalhavam: Zé Azul, motorista e braço direito das Irmãs, que as acompanhava para fazer compras no mercado e outras tarefas; Pedrinho e Tampinha, mecânicos e eletricistas, responsáveis pela manutenção dos carros; Seu Liordino, um velho senhor que dirigia tanto a Veraneio das irmãs como a caminhonete fordona. Esta tinha uma carroceria de carregar defuntos para o cemitério que parecia um oratório. Um dos divertimentos era cuspir fino e pouco nos olhos abertos dos mortos recém-chegados à funerária, para ver se eles piscavam e fechavam a pálpebra do olho salivado. Tinha ainda dois outros senhores, responsáveis pelo destrinchamento dos cadáveres para a vistoria do legista Dr. Geraldo Drumond: Seu Geraldo e Seu Barbosa. Este último era um negro forte que, antes de iniciar o serviço de corte, ia ao boteco mais perto e tomava um copo até a tampa de pinga. Ao final, outro, para arrematar. Um para ter coragem, o outro para esquecer. Na lateral da Santa Casa também tinha uma fabriqueta de hóstias. Sá Joana, após cortar as redondas pastilhas de trigo, distribuía as rebarbas para a gulosa meninada. Tinha moleque que chegava entalar com as sobras que pregavam do céu da boca a garganta adentro. Na esquina do Café Diplomata, iniciava-se o beco da Coronel Spyer. Logo depois do muro da casa de Tóla, no outro passeio, moravam Seu Idevano, gerente do Automóvel Clube, e Dona Pedrelina(24), costureira de mão cheia. Nosso convívio era com os filhos Marcão (Gordo) e Nenga (Nem Galinha). Este último era o capeta em forma de gente. Uma vez, minha mãe estava encomendando uma roupa na casa de Pedrelina e viu Nenga correndo em cima do muro do quintal. Assustada, mamãe perguntou: - Ave Maria, Pê, este diabo do Nem Galinha frequenta aqui também? Não sei como você aguenta, ele falta me enlouquecer lá em casa. Pedrelina, sem graça, disse: - Ô Jacy, eu tenho que aguentar, Marcos Antônio é meu filho. Colado na casa de Idevano havia o sobrado de João Caldeira, dono da madeireira que funcionava na Irmã Beata, ao fundo lateral da nossa casa. O dia inteirinho ouvíamos o barulho do vai e vem das serras cortando as imensas toras de madeiras. Era de lá que pegávamos a serragem para colocar nos gols dos campinhos de futebol. Ele tinha um filho, Roger que, salvo engano, foi para Belo Horizonte estudar dança, e uma linda filha chamada Vilma. Havia também o assisado Jackson, que o ajudava na serraria, andava sempre arrumado e só se deslocava montado numa bicicleta verde toda paramentada e limpíssima. Tinha um moderníssimo dínamo para acender os faróis e até um rádio acoplado no guidom. De dar inveja. Já quase no final do beco, situava-se a casa do Coronel João de Deus(25) e seus rebentos. Os homens, Ziba, Têra e Ada, eram companheiros de toda hora, tinham o sentido sempre voltado para as brincadeiras e para o futebol, quando não estavam no mundo encantado deles: Juramento. As meninas, Deusmira e Valmira, diferentemente, eram estudiosas e a última tornou-se promotora em Montes Claros. Na Cel. Spyer também moravam Dona Joana e seus filhos, Amarildo, Ronnie e Alexandre, amigos da rapaziada. Bem, depois de tantas e saudosas memórias, o que restou da minha baixada? Onde está o longo muro esburacado da Santa Casa? E o murinho da casa de Jessinho? Cadê os campinhos de futebol e as casas dos meus amigos com as portas escancaradas? Não vejo crianças nas ruas, nem o rio correndo vistoso e piscoso. Não ouço mais a gritaria da meninada, apenas buzinas e freadas. O cheiro de café foi substituído pela fumaça dos carros e das ambulâncias. Só na memória e de olhos fechados ouço o variado barulho dos rolamentos percorrendo as diversas texturas dos passeios das residências: zizizizi, vrum vrum vrum, tlec tlec tlec, vrup vrup vrup, ziiiiiiii, e o sonoro e contumaz tombo. Onde eu guardei as minhas bolinhas de gude, minha manivela de 16 cruzetas e o meu álbum completo de figurinhas, tão quistos? Cadê a minha tanajura mor, da bundona mais inchada, vitoriosa em todos os combates frente às dos outros meninos? E a meia dúzia de cobras de vidro que eu guardava na gaveta do meu guarda-roupa? Para aonde foi a minha coleção de selos, herdada de mamãe? Lembro-me de páginas e páginas de “Olho de Boi”, que troquei com Ernesto e Paulão por míseros centavos, por um lápis de cor ou por uma desejada borracha? Cadê a inocência de Cori, os causos do Cel. Georgino, a gentileza de Seu Juquita, a amizade de Waltinha, a fidalguia de Júlio de Melo Franco, a alegria de Tola, as palhaçadas de Tadeu, os tombos de Aníbal, o fundo musical do piano de Júnia, as brincadeiras de strak-deixa, estátua, bolso esquerdo, a raça de Têra e Ada na defesa e os dribles de Tone Lídio e Malveira no ataque? Não ouço mais a estridente corneta de Mazzaropi, nem a rouca buzina de Adão Padeiro, anunciando o seu pão alemão. Não mais flutuo por cima do rio Vieira, pendurado em cipós, nem pego mais cari em suas águas. Nunca mais nadei em seus poços ou brinquei nos esconderijos de suas margens. Hoje tudo está cimentado, asfaltado, enterrado na nossa memória. Tudo passou, foi embora, levado para longe, como as enchentes do Vieira que arrastavam madeiras, fogões, cobras, portas, vidas e sonhos. Resto-me só, desamparado, neste caos urbano, anônimo, tentando aspirar na memória, inocentemente, um pouco daquele cheirinho de café torrado, na esperança de voltar à minha infância para brincar com aquela meninada alegre e amiga, principalmente com os que se encantaram e nos deixaram saudades. Fim. NOTAS: (19) Filhas de Biô e Florinda Lopes, juntamente com Irmã Marilda, Padre João Batista, o vereador Hamilton Lopes, Geraldo, Antônio Augusto (Antoninho), Romário, Jason e Alexandre. (20) Neném, casada com João Rosquinha, pais de Ernane, Everaldo e Everlando. (21) Geraldo Borges e D. Sinhá, pais de Jandira, Elenice, Luciene, Cristina, Betinha, Marco, Walkir, Irã, Reinaldo e Marcinho. (22) Ubaldino e D. Marlene, pais de Tone Lídio, Lalá, Lucado, Cazoba, Caderinque (Ique), Sergio, Marcelo (Nem) e Viviane. (23) Píndaro e D. Ilda, Ari, Davi, Dandão, Ernani, Danilo, Oldack, Geralda (Gue), Kaia, Ieda e as gêmeas Eni e Adi. (24) Idevano e D. Pedrelina, pais de Marcão (Gordo), Marco Antônio (Nem Galinha ou Nenga), Marília, Mary e Marla. (25) João de Deus e D. Durvalina (Vainha), pais de Ziba, Têra, Ada, Deusmira (Di) e Valmira. 4

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