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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 21 de setembro de 2024
 

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Mensagem: Retrato da praça

Ruth Tupinambá Graça

A Praça Dr. Carlos foi, durante muito tempo, a sala de visita da nossa cidade. Os executivos daquela época (anos 20) tentaram transformá-la numa praça propriamente dita, ajardinada, fazendo jus ao busto do ilustre montes-clarense Dr. Carlos Versiani, inaugurada em fevereiro de 1920.
Aquela praça era apenas um largo e se chamava Largo de Cima, onde a grama crescia desordenadamente, os canteiros tinham somente flores agrestes, como boa noite, nas cores branca, lilás e roxa e a casadinha, em buquês vermelho, entre espinhos aguçados, floresciam, formando um bonito tapete colorido.
Urna cerca de arame farpado, grotescamente esticado, a contornava impedindo a invasão de animais vadios. Árvores enormes, centenárias, davam àquela praça um aspecto aprazível.
À tardinha, era para lá que as crianças, que ali residiam, se dirigiam organizando brincadeiras de chicotinho queimado, veadinho quer mel, boca de forno, correndo alegremente em volta dos canteiros, naquela sensação (que sentimos quando criança) de aventuras, coisas mal feitas e muitas vezes proibidas, fugindo à vigilância do João Pancinha, o único guarda da cidade e que, preguiçosamente, cochilava num dos bancos da praça, disfarçando seu sono sob os óculos escuros.
Mas esta praça simples era muito importante, porque ali se formara uma interessante cadeia de lojas. À sua volta, foram se agrupando as melhores casas comerciais, que por coincidência, pertenciam aos mais antigos moradores da praça, às mais antigas e tradicionais famílias de uma cidade que, sem recursos econômicos, longe da civilização, as lojas eram a única chance para se ganhar dinheiro.
As residências daquela praça possuíam, todas, ao lado, um cômodo de negócios (como diziam), cujos donos nelas sistematicamente moravam. Era muito mais cômodo e tranqüilo, atendendo os amigos e compadres a qualquer hora do dia e até à noite. Balconista era raro, o chefe de família com seus filhos davam conta da freguesia.
Era muito comum se assentar em cadeiras do lado de fora do balcão, com os amigos, para um dedo de prosa, enquanto a mulher e filhas escolhiam tecidos para os vestidos das próximas procissões de maio ou de agosto. Juntos, pitavam um cigarrinho de palha, experimentando o célebre fumo da mata.
Logo à entrada da praça, esquina da rua Coração de Jesus, hoje Governador Valadares, justamente onde está o edifício da Caixa Econômica Federal, ficava a residência do coronel Antônio dos Anjos. Uma casa colonial bem construída com sótão e sacadinhas de arabescos, em ferro, e vitrôs coloridos no alto das portas e janelas, tomava conta de meio quarteirão, tendo ao lado a loja, com grandes vitrines e balcão envernizado.
Coronel Antônio dos Anjos não era comerciante, e sim, grande político e fazendeiro. Era muito dinâmico e inteligente, homem de grande visão e progressista, muito trabalhou para o progresso da cidade, foi pioneiro nas pri¬meiras indústrias. Foi presidente da Câmara Municipal por muito tempo, dedicando-se de corpo e alma aos problemas administrativos de Montes Claros.
Enquanto isto, a loja ficava entregue ao Carlito e ao Benjamin, que a levaram displicentemente, e de muito boa fé, vendiam tudo fiado, tornando mínimos os lucros da loja. Mas o Coronel a conservava, dando ocupação aos filhos que não foram estudar fora.
Durante as férias, aparecia o Cyro dos Anjos, muito galanteador. Distraía-se ajudando os manos no balcão, namoriscando as freguesas que surgiam na loja, curiosas, para ver de perto o estudante da capital (coisa rara naquele tempo).
O bom e importante daquela loja eram as reuniões à tardinha. Depois das cinco, chegavam um a um, as figuras mais representativas da sociedade: juiz de Direito, promotor, delegado, advogados, médicos, coronéis, chefes de política local e num grande círculo, se sentavam em cadeiras colocadas no passeio em frente à loja.
A prosa se prolongava até tarde. Ali mesmo era servido um café forte e gostoso e os assuntos mais importantes eram ventilados; enquanto isto, a loja permanecia aberta.
Mais adiante, no mesmo quarteirão, ficava a loja do coronel Etelvino Teixeira de Carvalho, esquina da Rua 15, hoje Presidente Vargas. Uma loja simples, com largas portas, prateleiras e balcões toscos. Ali vendia-se de tudo. Cobertores coloridos, dobrados em leque, enfeitavam as portas e guarda-chuvas pendurados no teto, como a protegê-lo contra as goteiras. No passeio (porta da loja), bacias de ferro, artisticamente arrumadas, por tamanho, formavam pirâmides, assim como outras mercadorias e utensílios caseiros expostos ao chão logo à entrada e à vista do freguês.
Coronel Etelvino era negociante maneiroso, delicado, dava gosto entrar em sua loja, mas tinha fama de seguro, careiro e fiado, nem em sonhos. Seu único caixeiro era o José Alves, que atendia pacientemente a freguesia, enquanto coronel Etelvino contava os casos da guerra do Paraguai, cujas lembranças ele guardava, como relíquias, penduradas na parede de sua sala de visitas: uma bonita espada, boné e dragonas douradas, do seu uniforme da Guarda Nacional, a que pertencera.
Seu Etelvino e dona Estela recebiam poucas visitas, mas o caixeiro José Alves era freqüentador assíduo pois, com sua educação e ares de gentleman, conquistou a confiança dos patrões e o amor da sua filha Criselides, com quem se casou, continuando, com sucesso, à frente dos negócios, sob o olhar exigente do patrão e sogro.
Tudo mudou com o tempo. Hoje existe no mesmo lugar a Casa Alves, não mais do coronel Etelvino mas do próprio José Alves, uma loja diferente, moderna e alinhada. Ele continua com a mesma educação com que o conheci, anos atrás, procedimento tradicionalmente passado aos seus filhos que seguem a mesma linha do pai.
Em frente ao seu Etelvino, do outro lado da esquina, ficava a loja do seu Herculano Trindade (na Rua 15, hoje Presidente Vargas), onde se vendia de tudo e onde me encantava o colorido bonito das fazendas bem arrumadas nas prateleiras envidraçadas. Filhos e netos movimentavam-se, atendendo a freguesia, principalmente o Nenê e o Zeca Trindade, que mais tarde se revelaram ótimos negociantes graças à experiência, na infância, ao lado do exigente avô, que fiscalizava tudo com olhos espertos através dos óculos de arco de mental, sobre um fino e comprido nariz. Continuando o quarteirão do outro lado, na esquina ficava a Farmácia Americana, de seu Niquinho Oliveira (pai da senhora Ivone Silveira). Era o farmacêutico da época, com diploma e tudo mais, receitava e manipulava ao mesmo tempo. De temperamento alegre e comunicativo, ligava pouco para dinheiro e negócios. Não era comerciante mas poeta, um intelectual, e entre pílulas, drogas e porções, fazia sempre uma poesia que declamava, com entusiasmo, para os fregueses.
Mais adiante, a Casa Peres, do seu Chico Peres, uma casa colonial de janelas tipo guilhotina. Magro, de olhos vivos, na sua aparência calma e tranqüilo, era perspicaz, fiscalizava tudo, pondo seus filhos Cica, Levi, Rubens e ainda netos, para trabalhar na loja. Nada de caixeiro de fora e aos sábados (dia de maior movimento), até as filhas iam para oba1cão. Foi um grande comerciante que, na sua simplicidade, enriqueceu e sua família, ainda hoje, está usufruindo desta herança.
Mais adiante, na outra esquina com a rua Bocaiúva, hoje Dr. Santos, ficava a loja de seu ManoeI Higino. Era um velho miúdo, cego de um olho, mas enxergava por quatro, com sua esperteza. Era ranzinza e exigente, mas quando saía, seu único caixeiro espichava no balcão e roçava nos braços do morfeu. Naquele tempo não havia ladrões e a loja tinha pouco movimento ...
Saltando a Rua 15 ,descendo o outro lado da praça, ficava o Mercado Municipal, com sua bonita torre onde o relógio, incansável, durante muitos anos, marcou as horas da cidade, acordando as crianças para a escola e os homens para o trabalho. Era uma grande presença na praça, com armazéns dentro e fora, botequins, quitandas, e cafés (onde se vendia de tudo) e a monumental feira aos sábados, ocupando toda a frente e o fundo do mercado, com as mercadorias nas bruacas superlotadas de produtos da região. O mercado ocupava todo o quarteirão e era, sobretudo, o ponto “de reunião e de encontro de todos os montes-clarenses”. Todos os problemas eram ali resolvidos. Desde o jogo do bicho à política, ou acontecimentos sociais como casamentos, separações, mortes, adultério, perseguições políticas. Foi um golpe tremendo para a cidade sua demolição e um vazio insubstituível até hoje.
Abaixo do mercado, onde é hoje o Café do Zé Periquitinho, ficava a Casa Sapé, do coronel Carlos dos Santos (avô das irmãs Reis). Ele era um grande político e de grande inteligência e honestidade. Sua loja era muito sortida e requeria caixeiros, pois negociava por atacado. Bem relacionado, tomou parte ativa na política local, resolvendo os problemas da cidade com entusiasmo, chegando mais tarde a ser prefeito. Em sua loja nunca faltava o cafezinho para os amigos e correligionários.
Mais abaixo, na esquina da rua Governador Valadares, ficava a loja do João Salgado, que não era também comerciante, e sim fazendeiro. Sua loja era mais um ponto de reunião com os amigos.
Na parte de baixo, fechando a praça, não havia loja.
Morava a tradicional família Sarmento, ocupando todo o quarteirão onde é hoje o edifício Ciosa, até quase esquina com rua Altino de Freitas. Uma casa colonial grande e alegre, cheia de moças casadoras, inclusive a saudosa Dulce Sarmento, que com seu piano (coisa rara naquele tempo) alegrava e movimentava os saraus daquela casa freqüentada pela fina sociedade montes-clarense.
Na esquina da rua Altino de Freitas, onde é hoje a farmácia Dudu, ficava a do grande farmacêutico Fróes Neto (irmão de Dulce Sarmento). Era alegre, folgazão, contador de piadas e anedotas, enquanto seu único caixeiro, João de Paula, aviava as receitas e fabricava o deli¬cioso licor de pequi, o primeiro fabricado na cidade.
Assim eram os comerciantes da velha Montes Claros. As mercadorias não subiam de preço. Não precisavam de propaganda nem etiquetas para tapear o freguês. Com qualquer vintém, o pobre luxava e trazia sua mesa farta. Dormiam, tranqüilos, pois nem em sonhos o leão os aborrecia. Eram folgados e felizes, o que hoje é raro.
Está aí o retrato da praça de outros tempos, que nos deixaram saudades.
Os montes-clarenses saudosistas, que estão fora, quando aqui chegam procuram-na, em vão... Cyro dos Anjos que o diga!

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