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montesclaros.com - Ano 25 - segunda-feira, 25 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Rua dos Maribondos

Ruth Tupinambá Graça

A Rua dos Marimbondos, como o próprio nome indica, era uma rua perigosa, dividida ao meio automaticamente. Sim, automaticamente, pois aquela divisão não fora feita por demarcação topográfica, nem por imposição da Câmara Municipal, nem tampouco pela Delegacia de Polícia. Foi pura e simplesmente por questão de acomodação e exigência do meio ambiente.
A Rua dos Marimbondos era torta, formando ao meio uma enorme barriga, que a tornava mais feia ainda.
o calçamento era péssimo, em toda sua extensão daquele pé-de-moleque caroçudo, em que dificilmente uma dama poderia se equilibrar, por menor que fosse o salto do seu sapato.
Do meio para baixo, começando na esquina da rua Armênio Veloso, até desembocar na Padre Teixeira, ela era mais suja, mais estreita e, de lado a lado, camarotes e botequins imundos e mal freqüentados enquanto que, do meio para cima, era mais larga, mais limpa, casas de melhor aparência, e ao invés dos camarotes e botequins, havia um cabaré, na esquina com Visconde de Ouro Preto (hoje Rua Lafetá) que era a tentação da rapaziada, que não tinha outra opção.
Assim, a sociedade freqüentava (escondido) a parte de cima (o cabaré) e a classe mais nobre, a parte de baixo (os camarotes, que eram de um só cômodo e uma única porta para rua).
Os freqüentadores da parte de baixo eram justamente boêmios, cachaceiros, malandros e as mulheres, do mais baixo nível social e econômico, mal vistas pela sociedade, condenadas, como se não fossem, também, filhas de Deus. Mas, com todos estes defeitos e inconveniências, esta rua era uma tentação e um grande divertimento para todos.
A curiosidade, muito natural em criança, me deixava intrigada e procurava (juntamente com as colegas) desvendar o mistério daquela tão cotada rua.
Apesar da nossa pouca idade, já percebíamos que as famílias se sentiam afrontadas e até humilhadas com a safadeza daquela marimbondeza rua, e coitado daquele que fosse visto perambulando por aquelas bandas...
Mas, como os adultos pouca atenção davam às crianças, milhares de vezes descíamos da escola, e longe da vigilância de nossas mães, desobedecendo-as totalmente, e como se nada nos interessasse, descíamos tranqüilamente. E justamente no quarteirão mais quente, já quase desembocando na Padre Teixeira (onde morávamos) ligávamos as antenas para não perder nada.
E como era divertido aquele pedaço de rua! Mulheres assentadas em tamboretes do lado de fora dos camarotes, fumando enormes cigarros de palha, um copo de pinga na mão, embriagadas, tagarelando com homens de má aparência, assíduos freqüentadores daqueles botequins, discutindo sobre jogo de bicho (naquele tempo era franco), contando seus sonhos, procurando palpites para fazer sua fezinha...
Usavam vestidos bastante decotados, onde os seios pontudos pareciam querer saltar fora e o enorme rachão das saias deixava à mostra coxas grossas, com sinais de varizes, retratos dos excessos, falta de cuidado e de assistência médica.
Muitas vezes, usavam quimonos de fazenda fina, onde a transparência mostrava as formas e o contorno dos largos quadris.
Passávamos ressabiadas, o coração batendo fortemente. A emoção de estarmos fazendo algo de errado nos excitava, mas a curiosidade de descobrir o porquê fantástico daquela rua e o mistério que envolvia aquelas mulheres mundanas (como eram chamadas) nos empolgavam.
Na nossa fantasia, esperávamos encontrar ali, naquele tão sujo pedaço de rua, mulheres lindas, bem vestidas e perfumadas, verdadeira tentação ao sexo forte; mas, decepcionadas, verificávamos que eram simplesmente mal vestidas, mal tratadas e sem nenhuma beleza.
Então, qual seria a causa de tamanha polêmica de nossas mães, enfim, da sociedade? Onde estava o perigo, que tantas vezes, em conversas, deixavam escapar?
Éramos ainda puras e inocentes, incapazes de perceber a força dos instintos sexuais e seus segredos, e também as conseqüências trágicas e muitas vezes fatais, da promiscuidade daqueles camarotes, sem higiene, onde a sífilis era a hóspede constante, naquele tempo sem cura, por falta de antibióticos e profilaxia.
De um relance, se não fôssemos tão jovens, poderíamos descobrir, em seus olhos tristes e de roxas olheiras, os sinais da doença e da embriaguez, sob a qual procuravam afogar suas mágoas e o desespero daquela miserável vida.
Doentes, viciadas, mal amadas e exploradas, elas o eram realmente.
Nos botequins daquele quarteirão de bêbados e malandros, a cachaça dava-lhes coragem e as discussões e cenas de ciúmes terminavam em brigas.
À noite, a ronda aparecia (naquele tempo existia na cidade meia dúzia de soldados) mas era difícil impor a ordem, sem piedade, e, era comum tiros e facadas, culminando, muitas vezes, com prisões e até mortes.
Entretanto, na parte de cima da mesma rua, a vida noturna era mais calma. Na pensão e no Cabaré da Lizarda (que era uma cafetina simpática) e Maria do Bico Doce, elas sabiam conquistar a freguesia e como manjar os coronéis, arrebanhando mulheres mais saudáveis e de melhor categoria e até bem bonitas, tornando a Rua dos Marimbondos, pelo menos na parte de cima, mais cobiçada pelos tímidos e bem nascidos rapazes da nossa sociedade.
Muitas e muitas vezes matei minha curiosidade e, fascinada, ao invés de descer a rua Justino Câmara, que era o meu caminho certo, dava aquela volta...
E, nestas andanças, inúmeras vezes eu via rapazes conhecidos, e também namorados de minhas irmãs mais velhas, ou de suas companheiras, que se esgueiravam por aquela rua (e o faziam como se estivessem cometendo um crime) olhando amedrontados, para um lado e outro, e de uma vez, se afundavam na cobiçada pensão da Lizarda, que os recebia com um sorriso, e a Maria do Bico Doce com sua diplomacia.
Minha chegada em casa com aquele segredo me deixava desconfiada, receando os pitos da mamãe, caso descobrisse a minha aventura. Minha língua coçava com vontade de contar o que vira, mas procurava disfarçar,
pois a mentalidade preconceituosa das famílias, naquele tempo, jamais perdoaria aquele deslize.
Mas minha irmã conhecia-me bastante e apertava- me:
- Anda, bota para fora o segredinho. Você passou por aquela rua? Qual a novidade?
Eu, que já não agüentava mais, soltava a bomba: - Vi seu namorado entrando naquela pensão das raparigas ...
Ela ficava sem graça e dizia-me:
- Que tem isto? É preciso me pedir licença? Homem é homem... e continuava cantarolando uma canção qualquer, disfarçando a decepção.
E assim, durante muito tempo, a rapaziada tapeava e também os coronéis inventavam desculpas para ficarem em paz com as esposas, e se esbaldavam no cabaré da Lizarda, na Rua dos Marimbondos, única opção da cidade.
Aos poucos, ela foi se descaracterizando através dos tempos. A Câmara Municipal, por bem, com uma simples lei, acabou com os minguados camarotes e o cobiçado cabaré, e aquelas mulheres foram escorraçadas da Rua dos Marimbondos. Foram levadas para outra zona, onde pudessem exercer sua profissão com mais liberdade, sem ferir a sensibilidade das famílias.
Outras administrações vieram e alargaram a estreita e feia rua, os botequins desapareceram, surgindo lanchonetes e bares mais higiênicos.
Hoje, vejo-a cheia de casas comerciais, agências bancárias, boutiques sofisticadas, mulheres lindas que passam rebolando, no afã das compras... carros de todos os tipos deslizam em toda sua extensão.
Virou rua séria, bem comportada, familiar, ostentando, com muito orgulho, o nome do nosso antigo e dedicado delegado da Polícia, coronel Altino de Freitas.
Quem diria fosse possível tamanha transformação? Quando a vejo hoje, tão importante me vem à lembrança aqueles vultos infelizes, como fantasmas que povoaram, durante muitos anos, a Rua dos Marimbondos, comercializando seus corpos cansados, entorpecidos pela cachaça, naquela boemia, amando e consolando bêbados infelizes, reprimidas pela sociedade, procurando no vício, na embriaguês, a força para suportarem as injustiças e desigualdades sociais.
Rua dos Marimbondos... faz tanto tempo! Você desapareceu - o tabu de uma sociedade antiga, preconceituosa, e o mistério e grande fantasia da minha infància...

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