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montesclaros.com - Ano 25 - domingo, 24 de novembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 2)

TEMPOS HERÓICOS

Cada geração é propensa a crer que está vivendo em um mundo feito e acabado. Pura ilusão. Estamos ainda na aurora da vida humana. Ainda não acabamos de viver os chamados ´tempos heróicos´, do início da civilização.
A vida surgiu na superfície terrestre há cerca de 3.7 bilhões de anos - uma alga microscópica, feita de uma única célula, submersa em água parada aquecida sob o sol, penetrada por raios ultravioleta.
Mas o ´homo sapiens´ caçador nômade, vestindo peles de animais e utilizando apenas objetos de pedra, osso e madeira, só apareceu na Europa há 35.000 anos e dessa maneira viveu até há cerca de 10.000 anos. Foi a partir daí que os homens deixaram de ser nômades, instalando-se em aldeias, inventando a agricultura, a domesticação dos animais e descobrindo, mais tarde, a metalurgia.
Há cerca de 7.000 anos o homem criou a escrita.
A expectativa da permanência da vida humana no planeta é avaliada em cerca de 100.000 anos, quando o aquecimento da temperatura global provocar o degelo das calotas polares.
A nossa civilização encontra-se, portanto, ainda na infância. Muita água vai passar por baixo da ponte.
Haverá à frente de cada geração imenso futuro para a evolução do conhecimento, num ritmo que se tomará mais acelerado com o correr do tempo. Enquanto houver vida inteligente no planeta.

SONHANDO ALTO

Um mundo estável está cedendo lugar a uma era de profundas mudanças. Cabe-nos considerar que só temos uma vida e para merecê-la devemos procurar vivê-la pelo menos com um mínimo de compreensão pelo que nos envolve, pelo que nos rodeia.
De outra parte, a vida é dura. Ela nos impõe um sentido aritmético de deve/haver, de pode-não-pode, um compasso binário limitando as opções a uma dicotomia de vence-ou-perde, de vive-ou-morre.
Mas tendo embora os pés firmes na terra - é necessário tê-los e ai de quem não os tenha - urge que para se fazer jus ao prêmio de ter nascido se abram portas e se criem asas em cada um de nós. E se alcem vôos em busca de melhor compreensão da vida.
Nesse sentido, cabe papel importante a instituições como as universidades abertas a pesquisas.
Mas em qualquer instituição, como em tudo, o principal elemento, o componente mais importante é o homem. Que no DEVE-HAVER da vida encontra oportunidades para refletir sobre sua origem e destino. E erguendo os olhos, mais ao alto, possa vislumbrar luminosidades onde entreveja, quem sabe, a própria morada do impossível.

O MENINO

“No sertão onde nasci canta a juriti, canta o lenhador..”.
Nasci a 27 de junho de 1917, no então povoado de Várzea da Palma, ´termo de Pirapora, comarca de Curvelo´, como dizia Tertuliano Silva, vulgo Tatú, orador oficial da comunidade, nas horas vagas que lhe permitiam suas atividades de ferreiro, armeiro, relojoeiro, mecânico, barbeiro, artista cênico e presidente do Clube Lítero Recreativo.
Aos três dias de nascido apanhou-me de jeito uma febre alta, com desfalecimentos. Tão grave se tomou o quadro clínico que minha mãe mandou chamar, às pressas, o velho ferreiro Bertolino Ponciano, homem bom, temente a Deus, para batizar o menino, sob o temor maior de que viesse a morrer pagão.
Graças a Deus, o menino escapou e algum tempo depois, pelas mãos e orações de Frei Braz, padre franciscano, vigário de Pirapora, foi batizado com o nome de Luiz Gonzaga. No registro civil, no Cartório do sr. José Álvares da Silva, em Pirapora, o pai registrou-o sem o “Gonzaga” e assim o novo cidadão ficou com o nome de Luiz de Paula Ferreira.
Quando ultrapassou os três meses de nascido e começou a engatinhar, o menino ganhou um patuá para pendurar no pescoço e adquiriu o direito de ficar solto pela casa, pelado como nasceu, para arrastar-se.
- Como vai o menino, já está caminhando?
- Não. Ainda está se arrastando...
Arrastando-se a criança ficava por alguns meses, a princípio dentro de casa e depois, com o aumento da mobilidade, embarafustava-se pelo quintal e transpunha a porta da rua, sempre nuelo e sujo, ora rindo ora chorando ou brincando com o que encontrasse no caminho. E pondo na boca o que a mão fosse capaz de abarcar. Com o patuá de proteção contra quebranto e outras mazelas da vida, a balançar no cordão preso ao pescoço.
A propósito, minha mãe contava o caso do escravo a quem o rei mandara levar uma moeda de ouro para uma criança naquela faixa etária e na volta perguntou-lhe se fizera a entrega ao menino. O escravo respondeu que sim. Fizera a entrega ao menino.
- E que fez ele com a moeda? perguntou o rei.
- Ele guardou a moeda.
- Mentira! Berrou o rei. E ordenou que castigassem o
mau portador com vinte chicotadas e quinze dias de calabouço. E explicou:
- Menino que está se arrastando, tudo que lhe vai às mãos leva à boca.
Foi por isso que ainda nessa fase inicial de minha existência enfrentei pela segunda vez grave risco de perder a vida.
Em frente à nossa casa de morada e venda de meu pai havia alguns moirões de amarrar animais de sela e carga. Era a versão daquele tempo para a área de estacionamento de veículos que alguns estabelecimentos comerciais oferecem hoje a seus clientes.
Em um desses moirões estava amarrado um cavalo doente de peste. Meu pai, com sua experiência de vinte e cinco anos de tropeiro, estava tratando do animal.
Com uma colher grande, de cabo longo, apropriada à finalidade, meu pai havia empurrado pela goela abaixo, do animal empesteado, boa porção de um pó branco denominado tártaro emético.
Quem já fez ou já viu fazer esse tratamento sabe como é.
O animal reluta em aceitar o remédio. Reage. Estica o cabresto que o prende ao moirão, balança a cabeça com violência, mastiga a colher, escoiceia, relincha alto, baba, lambuza a colher e as mãos do tratador, mas afinal deglute a maior parte do medicamento.
E a colher é retirada, cheia de baba empesteada e restos do remédio.
No caso em referência, meu pai retirou a colher e jogou-a de lado, para cuidar do animal, acalmá-lo, passar-¬lhe a raspadeira e levá-lo até o mangueiro que ficava do outro lado da rua, em frente à venda.
Em seguida voltaria para mandar lavar e guardar a colher. Eu, que estava na minha, numa boa, como se diz hoje, arrastara-me para perto a fim de melhor presenciar aquela cena curiosa de homem dando remédio ao cavalo. E quando a colher foi atirada ao chão e o homem e o animal - retiraram, não tive dúvidas. Arrastei-me até lá, apanhei a colher, e na impossibilidade de metê-la na boca, afinal o cavalo é mais bem dotado do que os humanos, passei a lambê-la. Pus-me a lamber aquela mistura de tártaro emético com baba empesteada.
Minha mãe encontrava-se na cozinha, cuidando do almoço, quando Maria de sia Marta, a moça que cuidava (e descuidava) de mim, chegou esbaforida e foi despejando: ´corre lá fora, Dona. O menino tá gumitando. Ele comeu o remédio do cavalo´.
Minha mãe, chegando à porta da rua, me viu caído e correu para mim, e levou-me meio desacordado para dentro de casa e forçou-me a continuar vomitando. Ela acudiu-me a tempo. Passei mal mas sobrevivi.
Foi a segunda vez, em pouco tempo de nascido, que corri risco iminente de perder a vida.
De então até hoje muita água passou por baixo da ponte.
.

(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes)

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