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montesclaros.com - Ano 25 - domingo, 24 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Personagens do baú que guarda seis décadas de lembranças
Cyro Siqueira (jornal Estado de Minas)
Ao remexer no baú das memórias Acumuladas em seis décadas de Estado de Minas, não poderia deixar de me lembrar de Hermenegildo Chaves, um dos ícones do jornalismo mineiro.
Monzeca, como era conhecido, era admirado por todos aqueles que, como eu, estavam se iniciando na profissão, não só pela competência do seu texto como por sua figura humana. Era daqueles seres raros com que a vida nos surpreende, dono de uma espécie de fidalguia inata. Sempre respeitado, sempre amado, Monzeca– ninguém o chamava de Hermenegildo, embora alguns garantissem que detestava o apelido – teve uma trajetória ímpar na profissão. Cedo, o foca que eu era foi se encantando com a paixão que o ligava à palavra escrita. Como comecei escrevendo matérias e crônicas assinadas, acho que ele também começou aprestar atenção naquilo que eu ia fazendo. Daí nasceu uma amizade tímida, contida, entre o aprendiz de jornalista, menino ainda, e aquele homem modesto de natureza, sem maiores expansões, mas sempre debruçado sobre as laudas, que ia preenchendo a lápis, com a letra metódica, caprichosa que o acompanhou por toda a vida, pois jamais se curvou ao jugo da máquina de escrever. Com a perspectiva que somente a passagem do tempo dá, descobri que, mesmo sendo autodidata, Monzeca trazia consigo a musicalidade da frase bem-construída. Por certo terá saído com ela de Montes Claros, sua terra, cidade arraigadamente musical. O lirismo, aliás, estava no sangue do jornalista. Seu irmão, o advogado João Chaves, foi quem compôs uma das músicas favoritas dos seresteiros, Amo-te muito (“Amo-te muito, como as flores amam/O frio orvalho que o infinito chora./Amo-tecomo o sabiá da praia/Ama a sangüínea e deslumbrante aurora./ Oh! Não te esqueças que te amo assim./Oh! Não te esqueças nunca mais de mim…”).E o próprio Monzeca, assim como a irmã de ambos, Joaquina,também “cometia” lá as suas letras,em parcerias dos Chaves que ficaram célebres em Montes Claros.
A musicalidade de Monzeca era do tipo com que sonham os que se aventuram pelos atalhos
da escrita. Acredito que mais que a informação, mais do que a notícia, o que para ele tornava o jornal um produto encantatório era a lenta construção do texto bem-trabalhado.Na vigilância constante da qualidade de sua escrita, foi por certo um autor à altura da importância que este jornal ia adquirindo na imprensa mineira, naqueles tempos heróicos, tendo evidentemente a
seu lado Geraldo Teixeira da Costa,o Gegê, e Pedro Aguinaldo Fulgêncio.

(...)

Findo esse longo parêntese,volto a Monzeca. Certo dia, veio me mostrar uma notícia publicada no jornal sobre o “separamento” de um casal. “Esse casal devia brigar muito para provocar tão terrível ‘separamento’”, foi sua observação. Semanas depois, enquanto tomávamos café, ele assinalou o trecho de um artigo publicado pelo EM, “A maternidade é u mato solene na vida feminina”. Monzeca deve ter percebido que eu não estava entendendo nada. Então, perguntou: “Vida feminina em lugar de vida da mulher, isso é coisa que você escreveria?”.E acrescentou outra pergunta: “E esse solene? Não acha que existiria um adjetivo melhor, que o autor da matéria deveria procurar até encontrar?”. Foi a partir de 1965 que a saúde de Monzeca começou a acelerar seus sinais de alerta. Por causa deles, às vezes fazia seus editoriais em casa, mandando-os para o jornal. Mas, como ele próprio dizia, seus achaques foram piorando até o dia em que começou a se sentir mal na redação, queixando-se de “uma tempestade nos ouvidos”. Com aquele jeito peculiar, referiu-se às suas artérias: “Acho que estão muito escangalhadas”. Não saiu mais de casa. De lá, ele mandou o que seria seu último editorial, cujos originais estão entre os já tantas vezes mencionados guardados meus. No texto,Monzeca trata dos “desastrosos efeitos da inflação”, isso em 1966. Tomo a seguir a liberdade de reproduzir um trecho do editorial, eterno em forma e conteúdo: “Os maníacos do inflacionismo fizeram no Brasil o que fazem em toda parte: nivelaram na pobreza os que vivem de vencimentos e salários. E, acima dessa grande maioria, instituíram a casa privilegiada dos aproveitadores, que se iam tornando cada vez mais ricos, na mesma medida em que os outros iam ficando cada vez mais pobres.” Outra memória de Monzeca que guardo com carinho é de quando me disse uma frase que se tornou, de certa maneira,a sua profissão de fé. Com a paciência de um professor atento, certa vez me deu um recorte sobre um livro a respeito de Eça de Queiroz, com o fac-símile da correção que o próprio autor português havia feito nas provas tipográficas de Os Maias.Diante do meu olhar espantado, Monzeca observou: “Você pode dizer que Eça é o Eça, e eu sou apenas um pobre homem das margens do Rio Verde.” Com a sutileza que também com punha a personalidade desse homem das barrancas do Rio Verde Grande, que corta Montes Claros, acrescentou: “E está certo. Mas não deixa de ser comovente o cuidado com que certos pobres estão sempre remendando os seus trapos, para andar menos esfarrapados”. Essa foi uma lição da qual o menino jamais se esquece, enquanto continua remendando seus trapos pela vida aforam tentando andar menos esfarrapado.

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