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montesclaros.com - Ano 25 - sexta-feira, 20 de setembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 9)

Minha mãe era uma mulher de gênio bondoso, paciente e trabalhadora. De estatura mediana e atitudes singelas, sempre trabalhou muito na cozinha, para atender ao pessoal de casa, “camaradas” da “Fazenda do Espinho” e hóspedes, que eram freqüentes.
Nos primeiros anos não havia pensão no lugar e a nossa casa tornara-se a hospedaria oficial e gratuita das pessoas que vinham de Montes Claros e de outras localidades do Norte de Minas, para apanharem o trem da Central.
Com tanto serviço, não sobrava tempo à minha mãe, senão de quando em quando, para dar um grito ou, se estivéssemos mais próximos, sapecar um beliscão em qualquer dos 6 (seis) selvagens que tinha em casa. Depois crescemos para oito.
Fomos criados soltos, pois meu pai tinha mais em que se ocupar na loja, na Fazenda, na extração e compra de madeiras, na compra e venda de porcos, algodão, peles silvestres, mel etc.
As porcadas eram conduzidas ao Rio das Velhas, a um quilômetro de distância, duas vezes por dia. Isso era uma festa para nós.
Devo esclarecer que o pensamento de meu pai, ao transferir-se de Montes Claros para Várzea, então ponta dos trilhos da ferrovia, era trabalhar pesado ali, durante algum tempo, ganhar dinheiro e seguir em frente, para uma boa cidade, onde pudesse criar os filhos com conforto e saúde. Pensava em São Paulo. Mas as coisas não aconteceram como ele desejava. O prosseguimento dos trilhos, de Buenópolis em direção a Montes Claros reduziu o movimento comercial de Várzea com o Norte do Estado. Como meu pai havia aplicado parte de seu capital em imóveis, ficou difícil apurar com rapidez o dinheiro imobilizado.
Registre-se que a queda da produção motivada pela epidemia da Gripe Espanhola (1918/1919) na qual morreram correntistas devedores da firma Paula & Irmão, endividaram-na pesadamente.
Com o pai absorvido por trabalhos redobrados, para recompor a economia da firma, nós, os filhos, que já éramos criados com bastante liberdade, ficamos ainda mais soltos.
Fazíamos o que queríamos e quando queríamos, apanhando de vez em quando uma boa surra, quando nosso pai tinha tempo para isso.
O Geraldo, irmão mais velho, era exceção, trabalhando firme ao lado do pai.
Sofríamos todas as agruras que perseguem os meninos da roça. Durante o frio, maltratavam-nos as dores de dentes. Recordo-me de nossa mãe, sempre boa e paciente, levantando-se no meio da noite e esquentando azeite doce na chama da lamparina a querosene para tratar da dor de ouvidos do caçula, enquanto alguns de nós a puxávamos pela saia, gritando com dores de dentes. Ela, pacientemente, colocava no ouvido do caçula o algodão embebido em azeite doce aquecido, acalmava-lhe o choro e o recolocava no berço. E se voltava para nós.
- Qual é o dente que está doendo?
- É este aqui, do canto, dizíamos apontando o local.
Ela apanhava novo capucho de algodão, embebia-o em azeite doce e besuntava nossa gengiva e a área da bochecha próxima ao local dolorido e colocava na cavidade exposta uma bolinha de algodão embebido em ácido fênico ou creosoto. E dava a cada um de nós um tostão. Quando havia essa raridade.
Passado o período do frio e das dores de ouvido e de dentes, de maio a julho, vinha o fim do estio, de agosto a setembro/outubro. Era o tempo dos bichos de pé, dos carrapatos e rodoleiros. Era também o melhor tempo para caçadas e pescarias. Nós espalhávamos pelos matos e beiras de córregos. Havia ocasião em que nossa mãe só nos via à noite. Comíamos qualquer coisa e íamos dormir. E nossa mãe, terminada a labuta diária, aproveitava nosso sono para nos lavar os pés e extirpar os bichos. Nessa última operação, o instrumento era um alfinete de fraldas, com a ponta aquecida ao rubro na chama da lamparina e resfriado a sopros. Muitas e muitas vezes, eu que nessa fase era o mais novo entre os maiores, acordava estremunhado, sentindo os dois pés suspensos, enquanto minha mãe ia descobrindo os bichos de pé embaixo das unhas, entre os artelhos, na sola dos pés, e no tendão de Aquiles, a guisa de esporas. Eu resmungava qualquer coisa e vencido pelo cansaço das andanças do dia, mergulhava de novo no sono, para acordar no dia seguinte, com os pés furados e manchados de iodo.
Seguia-se o tempo das chuvas. Novamente o frio e dores de dentes. E tiririca, nos calcanhares, e frieiras, entre os dedos dos pés, apanhadas nas enxurradas e doendo e sangrando em contato com o ar. As tiriricas eram lixadas com a parte áspera dos cacos de telha e as frieiras eram tratadas com aplicações de creolina. Mas só desapareciam ao cessarem as chuvas, em março/abril. Perseguiam-nos, também nessa ocasião, os brotos, nome que se dava as nascidas ou pequenos abscessos que irrompiam nas pernas e braços em conseqüência do consumo imoderado de mangas, pequis e outros frutos considerados “quentes”, pelo vulgo. Alguns desses brotos inflamavam e evoluíam para perebas e feridas, que tratávamos com água de cozimento de cascas de pau santo e barbatimão (adstringentes, ricos em tanino) e para cicatrizar aplicávamos carvão moído de caule de embaúba.
As chuvas terminavam em março para abril e em maio voltava o tempo de frio, com as dores de dentes.
Durante o ano sofríamos as doenças comuns às crianças. O sarampo, tratado com chá de “jasmim de cachorro”, ou seja excremento de cachorro ressecado e envelhecido sob a ação do tempo. Caxumba, tratada com aplicação tópica de massa formada com compressa de casa de marimbondos. Catapora, curava-se com o tempo. Cobreiro ou cobrelo (herpes-zoster), sofri certa ocasião. A região das virilhas, entre as pernas, abriu-se em chagas ardentes, de um lado e outro, aos 5 para 6 anos de idade. Não suportava o contato da calça. Minha mãe costurou para mim, em sua velha máquina Singer, de oito gavetas, uma camisola, que eu vestia constrangido pelos apupos dos irmãos. Fui tratado com “simpatia” aplicada pela velha Regina, mulher do José Bruno, empregado de meu pai. Só a muito custo, e em face das dores que sentia, permiti que ela visse o local da doença. Para o tratamento ela requisitou uma faca virgem (o que me causou justificadas desconfianças) ou seja faca retirada da loja, que ela apertava de um lado e outro de minhas virilhas, enquanto balbuciava uma reza apropriada. Em seguida passou sobre as chagas três galhinhos de arruda, que atirou para trás, por sobre os ombros, mandando depois que verificássemos como ficaram murchos, bom sinal para a cura. E mais: sarna, coqueluche, impingem (impetigo), dermatose contagiosa que se tratava com esfregaço de pólvora negra transformada em pasta com suco de limão. Lombrigas: tratadas com óleo de Santa Maria (óleo de mastruço). Os resfriados e conseqüentes defluxos nos perseguiam constantemente.
Para cicatrização das feridas, se falhava o pó de carvão de embaúba, meu pai preparava um pó infalível à base de iodofórmio, sulfato de quinino, pós de Joanes e mercúrio.
Nossos cabelos cresciam muito. De vez em quando nosso pai nos levava ao quintal e um a um nos mandava sentar no tôpo de um barril vazio e pelava nossas cabeças com máquina zero, enquanto os outros corriam pelo quintal, em cavalos de pau, ou carreavam com bois de ossos ou de mangas verdes.
O dia pior de nossa vida era o dia de tomar lombrigueiro. Meu pai consultava a folhinha, marcava a fase da lua em quarto minguante e nos anunciava: tal dia não tomem café pela manhã porque vai ser dia de lombrigueiro. Não nos adiantava apelar. Tomava-se o lombrigueiro em cápsulas de óleo de santa maria (mastruço) e algumas horas após, um purgativo salino.


(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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