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montesclaros.com - Ano 25 - sexta-feira, 20 de setembro de 2024
 

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Mensagem: Nos tempos em que os bebês nasciam

Ruth Tupinambá Graça

Logo após o casamento toda a cidade (que ainda era pequena) ficava curiosa aguardando a grande novidade do casal.
Quando demorava muito uma comadre mais curiosa procurava o casal bisbilhotando: Qual o motivo daquela demora? A cegonha estava atrasada voando por fora... o que seria?
O normal era, logo após a lua-de-mel, aparecer o enjôo e aos nove meses, o bebê.
Era pecado, evitar filhos. A mulher casada não tinha outra escolha, teria os filhos que Deus mandasse. E por mais pobre que fosse a família, o ditado era consolador:
Deus dá, Deus cria. E assim a casa enchia.
Os bebês nasciam e como nasciam!
A maioria num desconforto tremendo, após um sofrimento de oito a doze horas. Os poucos médicos da cidade eram só para doenças graves e parto (não é doença) ficava a cargo das parteiras, na maioria das vezes, sem nenhuma noção de higiene. Eram apenas curiosas, num grande desejo de servir.
Durante a gravidez a gestante deveria se abster de certos alimentos considerados maléficos, presa a crendices daquela época: não podia comer pele torrada (a placenta ficaria agarrada), pimenta e couve (provocava dor de barriga no neném), carne de porco sem castrar (atrasava o parto).
Depois vinha o resguardo, ainda mais severo: limonada e frutas ácidas nem em sonhos. Surubi, bacalhau e dourado eram remosos (indigestos), carnes de caça (veado, tatu, paca etc.) provocava alucinações (o parto subia para a cabeça).
Em compensação, havia o Vinho Reconstituinte, a cerveja preta, canjicas e mingaus para ajuntar leite.
Os frangos eram tratados em poleiros separados, comendo ração especial, durante os nove meses, para a alimentação da parturiente, um pirão gordo de farinha do Morro Alto e temperos especiais durante os trinta dias de resguardo.
O tratamento dos bebês era outro drama. Após o corte do umbigo (qualquer tesoura) o curativo era feito com azeite de mamona quente e pó de fumo torrado, durante sete dias.
Era comum a criança morrer durante esse período, principalmente nas roças. Muitas mães só completavam o enxoval depois dos fatídicos sete dias, se a criança escapasse... a maioria morria com o mal dos sete dias, mas na verdade o mal era infecção umbilical. As parteiras menos esclarecidas acreditavam que aquele mal levava impiedosamente as criancinhas.
Com os meus seis anos, eu já entendia e percebia certas coisas em casa. A mamãe estava incomodada, dizia o pai, passeando na sala, de um lado para outro; muito afobado. Algo estava acontecendo.
A Martha, uma velha escrava, cria do vovô e que nos pageava, imediatamente nos levava para o quintal, procurando nos distrair.
A cegonha ia chegar e depositar o neném no balaio que já o esperava (suspenso por cordas presas ao teto), enfeitado com fitas e tiras bordadas. Não existia maternidade, tudo era resolvido em casa mesmo, apenas com a parteira.
Na cidade havia três especiais: Sá Germana, Sá Theófila e Sá Rosinha Leite. Eram as mais esclarecidas e conscienciosas, atendiam as grávidas de melhor nível social. Eram procuradas e respeitadas por todos e até pelos médicos. Mamãe gostava mais de Sá Germana, era muito discreta e paciente. O papai ia buscá-la com muito respeito.
Ela chegava tranqüila, vestida de preto (era viúva), trazendo em baixo do chale de lã, com grandes franjas em marambaias os apetrechos para a importante tarefa. Fazia o parto, a seu modo. Tudo dependia da natureza da parturiente e assim ela sofria esperando a hora mandada por Deus. Nenhuma anestesia e, após doze a quinze horas (era normal) de dores fortíssimas, as dilatações se completavam auxiliadas apenas por cápsulas de quinino, fomentações quentes na barriga, banhos e escaldas pés.
Acontecia às vezes, não completar a dilatação, vindo, em conseqüência, a hemorragia.
Chamava-se o médico na última hora e nem sempre dava tempo de salvar o neném, usando o fórceps. O bebê nascia sozinho, debatendo-se, sofrendo juntamente com a mãe. O esforço era tremendo e nascia tão inchados! Muitas vezes até com hematomas.
Hoje os bebês não sofrem e noventa por cento não nascem. Existe, para a tranqüilidade de todos, a cesariana que resolve o problema com conforto, sem dores e sofrimentos, só que exige muita grana...
Eu rezava para que Deus desse a mamãe uma boa hora, fazia promessas incríveis, enquanto a Martha inventava mil coisas para nos prender no quintal. Eu opinava sempre pelo guisado completo até com sobremesa de melado de rapadura com mandioca. Ela concordava, havia tempo, a cegonha não tinha pressa. Ela nos punha para catar gravetos naquele enorme quintal.
Tudo pronto, eu subia cuidadosamente com o prato de comida, na mangueira. Era gostoso comer nas alturas e depois jogar o prato lá embaixo... era uma grande aventura.
Quando tudo serenava, éramos chamados para ver o irmãozinho que já dormia enroladinho no queiro de baeta vermelha (para dar sorte), bem refestelado no pequenino balaio. A mamãe dormia tranqüila, que alegria! Olhávamos desconfiados procurando entender aquele milagre.
Na cozinha começava um movimento diferente. A própria parteira preparava o pirão para a mamãe com temperos especiais para não secar o leite nem provocar cólicas no bebê.
O Vinho Reconstituinte e a cerveja preta, comprados de véspera, já estavam no armário e a marmelada Colombo, para a sobremesa da mamãe.
Em casa tudo mudava. Não podíamos correr dentro de casa, fazer barulho, nem dormir tarde.
Papai falava pouco sobre a situação, apenas gestos, mas entendíamos tudo. Tínhamos que ser educados e bonzinhos.
A parteira vinha todos os dias para o banho e o curativo do umbigo do nenê, que geralmente caía no oitavo dia.
Às vezes atrasava. O bebê tinha o umbigo muito grosso e que dificultava a cicatrização. A parteira gracejava: isto é porque ele vai ser muito rico ou um político muito importante.
Era comum enterrar o umbigo logo que caía. A mamãe era muito supersticiosa e para a sua tranqüilidade guardava-os (de todos os filhos) numa caixinha de couro preto, com bordados de tachas douradas. Os supersticiosos acreditavam que se rato o carregasse, o menino mais tarde seria um ladrão, e se o perdesse, ficaria desorientado na vida.
Durante muitos e muitos anos, vi aquela caixinha com os tesouros da mamãe... bem guardadinhos.
Mas, com o correr dos anos e as nossas mudanças, eles se perderam com o tempo... mas nenhum azar nos aconteceu.
Não existe nenhum ladrão na nossa família (modéstia à parte), e até agora, nenhum desorientado...

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