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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 23 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 20)

ME ENSINA

Quando cursava a quarta série primária, em Pirapora, juntamente com um irmão mais velho, certa noite, ao fazer o dever de casa, esbarrei num problema de difícil solução. Naquele dia a professora nos passara problemas de redução à unidade, de juros e frações. E mais aquele cujo enunciado, em meu entender, estava incompleto. Devia estar faltando um dado que orientasse o raciocínio.
Deixei-o por último. E uma vez resolvidos os outros, voltei a ele.
Eu tinha 11 anos, estava fora de casa e era tímido. E pesava sobre mim o conceito de aluno adiantado, que me cabia defender. Amargurava-me a expectativa de entregar à professora um problema não solucionado.
Na ocasião éramos hóspedes mensalistas de um pequeno hotel e ocupávamos um quarto dos fundos, com porta voltada para área interna.
Meu irmão me observava, calado, acompanhando meu trabalho, à espera da solução, enquanto me debatia, a fazer contas e mais contas, sem chegar ao fim.
Depois de certo tempo, não sei por que, talvez para enganar o cansaço e a frustração, passei a dirigir-me aos móveis e objetos do quarto, a dizer: “me ensina, cadeira. Me ensina, mesa. Me ensina, moringa. Me ensina, janela. Me ensina, porta”. E olhando através da porta, naquela seqüência de pedidos, eu ia dizer “me ensina, roseira”, porque havia uma roseira no pátio, logo depois do passeio que se estendia rente à parede. Quando disse “me ensina” e ia completar a frase, passava pelo passeio, o velho e único garçom do hotel, o senhor Polidoro. Era um pobre homem da roça, modesto e de pouca conversa e que nas horas de folga era visto a fumar seu cigarrinho de palha.
Naquele momento ele levava uma bandeja com bule e xícaras. E ao ouvir-me, voltou-se.
- Você me chamou, menino?
- Não, senhor – respondi – Eu não chamei.
Mas ele insistiu:
- Chamou, sim. Eu volto já!
E de fato voltou. Já sem a bandeja. E foi dizendo:
- Você me chamou, sim. Você me pediu para ensinar a lição.
Eu ia responder e explicar a ele como aconteceu chamá-lo, mas antes que iniciasse a explicação ele perguntou:
- Como é que você soube que eu sou professor?
Meu irmão e eu nos limitamos a fitá-lo. Ante o nosso silêncio ele passou a esclarecer:
- Eu fui professor na roça, meus filhos, por muitos anos. Em minha terra, em Coração de Jesus. Sempre gostei de ensinar português e matemática. O que vocês estão querendo saber?A revelação nos causou espanto. Como poderíamos imaginar que o velho seu Polidoro, com sua calça de zuarte, camisa de zefir barato, feita por costureira, e suas botinas roceiras, de elástico, pudesse haver sido, algum dia, professor seja lá do que fosse?
Imaginar isso era impossível. Mas ele estava ali a afirmar que era professor e querendo saber qual a nossa dificuldade.
Incrédulo e desconfiado, sem nada esperar daquela pobre ajuda, apanhei o caderno que deixara sobre a mesa e li para ele o texto do problema.
Um sorriso simpático se estampou no rosto do bom velho. Assumindo postura professoral, ele passou a explicar:
- Este problema, meus filhos, é muito bonito. Mas vocês não poderiam resolvê-lo sem conhecer a fórmula das proporções. Há um problema clássico, nesse modelo. É o das 100 pombas. Já ouviram falar nele?
Nós não tínhamos ouvido e ele se dispôs a esclarecer-nos. Sentou-se na única cadeira existente no quarto (eu e meu irmão estávamos sentados em nossas camas) e dissertou:
“Um gavião passou voando ao lado de um bando de pombas e as saudou: bom dia minhas 100 pombas! Elas responderam: bom dia seu gavião. Mas 100 pombas não somos nós. Mas nós, outras tantas de nós, mais a metade de nós, mais a quarta parte de nós e contigo, gavião, 100 pombas seremos nós”.
- Quantas pombas eram elas?
Nós não sabíamos. E àquela altura nos dominava a surpresa diante da metamorfose que se operara na figura modesta e apagada do velho caipira.
- Eram 36 pombas. Mas não basta saber que eram 36. É preciso saber como chegar a esse número. Eu vou ensinar a vocês. É um problema curioso que se resolve mediante a aplicação dos princípios da Regra de Três. É uma fórmula chamada “falsa posição”.
E prosseguiu:
- Vocês pegam um número qualquer, a esmo, e façam as operações de acordo com as respostas das pombas. No final irão encontrar um número falso. Daí o nome de falsa posição.
Com o acréscimo desse número falso vocês terão elementos completos para armar a proporção. E assim resolverão o problema.
De nossa parte, fitávamos embasbacados, o velho professor da roça. Graças a quem ficara confirmada a minha observação de que faltava naquele problema um elemento chave para a solução. Terminada a explicação ele pediu papel e lápis para colocar a fórmula em prática.
- No caso das pombas, tomem por exemplo um número qualquer. Vamos tomar o número 20. Assim teremos:

Nós 20
Outro tanto de nós + 20
A metade de nós + 10
A quarta parte de nó + 5
E contigo Gavião + 1
Soma 56

- O número 56 é o número falso. Ele vai servir para armarmos a proporção. Dizendo isso ele traçou no papel a seguinte proporção:

(56-1) estão para 100 - 1) assim como 20 estão para X

Retirando-se os parênteses a proporção ficou assim:

55 : 99 : : 20 : X

Em seguida ele nos ensinou a aplicar a fórmula: multiplicar os meios e dividir pelo extremo conhecido. Ou seja: multiplicar 99 por 20 e dividir o resultado por 55:

99 x 20  55 = 36

Conhecendo o processo foi-nos fácil resolver o problema proposto pela professora.
Naquela noite o velho e modesto professor da roça ensinou-nos muito mais do que simplesmente como fazer um dever de casa. Ele nos deu uma lição de humildade e amor à sua vocação. Uma lição de vida. Tudo isso como desfecho de uma curiosa urdidura do acaso. E alguém já disse que o acaso talvez outra coisa não seja senão o pseudônimo de Deus, quando Deus não quer assinar.

FIM DO QUARTO ANO PRIMÁRIO

Terminados os exames, preparamo-nos para regressar a Várzea no S-2, o trem que saía à tarde, para Belo Horizonte. Nosso pai tinha vindo na véspera, para acertar com a pensão e regressar conosco.
No início da tarde ele nos levou ao Trapiche do Norte, para agradecer ao sr. Raimundo Nascimento ter-nos dado ocupação na mercearia e na tipografia. E para nos despedirmos dele.
A distância entre Pirapora e Várzea é de 44 quilômetros, com parada intermediária em Buritis das Mulatas. O trem cobria esse percurso em uma hora e meia.
No meio da viagem, no carro de 2ª classe em que viajávamos, nosso pai aproximou-se de nós e nos disse que nossa mãe estava doente. Estava com pneumonia. Mas estava sendo medicada. E explicou que não nos falara no dia anterior para não nos prejudicar no exame.
Ficamos muito tristes e preocupados porque pneumonia era doença muito perigosa naquele tempo.
Ao chegarmos fomos depressa ao quarto da nossa mãe. Sua aparência nos espantou. Ela, que era uma mulher robusta e sempre bem disposta, estava muito magra e pálida, a tossir e a gemer, com dores nas costas.
No quarto, como em toda a casa, não havia forro sob o telhado. De um dos caibros, de madeira roliça, descia uma corda grossa de bacalhau, com alguns nós nos quais ela firmava as mãos para sentar-se, nas horas de tomar remédio.
O tratamento foi demorado. Durou meses.
De Montes Claros vieram alguns remédios, pelo correio. De receita passada para meu tio Basílio, quando ele sofreu a mesma doença.
Mas nossa mãe sempre dizia que se curou tomando cozimento de batata de roda. É uma batata do campo, que é arrancada e cortada em rodelas e posta a secar.

(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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