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montesclaros.com - Ano 25 - quarta-feira, 18 de setembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 24)


O ESTUDANTE

INÍCIO

Aos seis anos e meio entrei para a Escola Rural Mixta (com x) de Várzea da Palma, diplomando-me no final do 2º ano, com nota 10 (distinção). Dessa formatura guardo o diploma com carinho e respeito. Ele traz as assinaturas da professora, Flávia Pimentel Roquete e do presidente da mesa, Joaquim de Paula Ferreira, meu pai.
Fiz o terceiro ano no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, em Montes Claros e conclui o curso em Pirapora, em 1928, com nota 10, distinção.
O ano de 1929 e parte do ano de 1930 eu passei em Várzea. Foi um tempo rico em convivência com a natureza e as pessoas do lugar.
Em agosto de 1930 meu pai combinou com meu tio Basílio meu retorno a Montes Claros. Para tentar o prosseguimento dos estudos. Dessa vez eu fui sozinho, sem a companhia dos dois irmãos mais velhos.
As notícias que tínhamos de Montes Claros eram de que em 1928 começara a funcionar o Gynnásio Municipal de Montes Claros e que meu primo Antônio, um ano mais velho que eu, matriculara-se no ano anterior no Curso de Admissão, fôra aprovado nos exames e estava matriculado no primeiro ano ginasial.
As aulas haviam começado em fevereiro ou março. Eu estava indo em agosto.
(É bom lembrar que estávamos vivendo os tempos negros da depressão de 1929).
A viagem se fazia pelo S-2, trem expresso, com pernoite em Corinto. Viajei de carona, acertada com o chefe do trem.
Levava comigo uma carta de meu pai, para o senhor Manoel de Sá, proprietário do Hotel Ideal, em Corinto. Na carta ele pedia ao hoteleiro que me hospedasse, por uma noite, e conseguisse no dia seguinte uma carona para eu prosseguir viagem para Montes Claros. Tudo seria acertado com a venda de bilhetes de loteria que o sr. Manoel de Sá mandava para o estabelecimento de meu pai.
Eu viajava contra minha vontade, obrigado por meu pai. E levava comigo muitas preocupações.
Da primeira vez, em 1926, fui para a casa do meu tio a convite dele. Desta vez eu estava indo a pedido de meu pai. Eu estava indo para a casa dos outros, sem ter recebido convite. Era uma situação muito constrangedora para mim. As matrículas haviam se encerrado em janeiro e eu estava indo em agosto. Além disso, fazia mais de ano que eu estava com uma ferida feia na perna, que não sarava com os banhos de entrecasca de pau santo e de barbatimão. Incomodava-me chegar em casa de meus tios com aquela ferida.
Eu já conhecia o sr. Manoel de Sá, dono do hotel em Corinto. Ele andava sempre de cara fechada. Foi assim que me recebeu. Mas era um bom cidadão, honesto, trabalhador e prestativo. Leu a carta de meu pai e me arranjou um quartinho escuro, sem janelas, nos fundos do hotel, depois do quarto da cozinheira, para passar a noite. E me avisou. “Levante cedo. Às seis e meia nós vamos para a estação. O trem para Montes Claros parte às 7 horas”.
No outro dia, cedo, fomos para a estação.
Por sorte o chefe de trem escalado para Montes Claros era o mesmo que viera até Corinto. Tudo combinado, eu fui instruído para continuar na segunda classe e devia manter-me atento quando chegasse a Buenópolis, onde ocorria um cruzamento de trens. Se o Fiscal Itinerante, que viria no trem de Montes Claros, resolvesse passar para o nosso, como era comum acontecer, alguém me entregaria um bilhete já picotado, que eu apresentaria ao chefe de trem, quando este viesse percorrendo os carros, acompanhado do Fiscal Itinerante. Em Buenópolis fiquei atento, mas o trem partiu sem que me procurassem. A linha estava livre.
Ao chegar a Montes Claros, carregando minha velha mala de papelão, encontrei um quadro não desejado, mas que me favoreceu. O meu primo Antônio também estava com uma ferida na perna, em piores condições do que a minha, só que a dele estava recebendo tratamento médico: banho diário com Líquido de Dakin (hipoclorito de sódio) e aplicações de uma fórmula líquida receitada pelo Dr. Santos. A ferida localizava-se no terço médio da tíbia, na parte frontal, e sangrava quando ele tentava caminhar. Em conseqüência o Antônio fôra obrigado a trancar a matrícula e perder o ano.
A minha ferida não me impedia de caminhar, localizada que estava na parte lateral esquerda do terço médio da tíbia. Não alcançava o osso e por isso não forçava sangramento.
Meus tios ficaram satisfeitos com a minha chegada. O Antônio era o filho caçula, muito adulado. Eu, sendo apenas um ano mais novo, era uma boa companhia para ele.
Meu tio Basílio, sempre bondoso, conseguiu matricular-me, mesmo àquela altura do ano. Imagino que ele aproveitou a matrícula do Antônio.
As aulas eram ministradas em dois turnos. Das 8 às 11 horas da manhã e das 13:00 às 16:00 horas.
Meu primeiro dia de aula não começou bem.
Às 8 horas da manhã, do dia marcado para meu comparecimento, o padre Eugênio Guypers, diretor do Colégio, levou-me à sala de aulas e me apresentou ao professor Firmino Velloso, informando que eu viera do interior e que o colégio abrira uma exceção e aceitara minha matrícula para tentar o ingresso ao curso ginasial.
À nossa frente estavam os alunos, com o vistoso uniforme de brim cáqui – túnicas abotoadas até o pescoço e calças compridas. Fazia parte da turma um primo meu, o Olympio Teixeira Guimarães, um dos poucos alunos externos a fazer o curso. Ele havia me informado que a turma se compunha de mais de 40 rapazes, com idade que variava de 14 a 18 anos, quase todos estudando em regime de internato. Eram filhos de fazendeiros da região. Eles eram submetidos a uma disciplina muito severa, com horário rígido para refeições e estudos, que começava com uma missa diária, às 6 horas da manhã e terminava com o recolhimento ao dormitório às 9 horas da noite.
Os alunos ouviram as palavras do diretor no mais absoluto silêncio.
Assim que o diretor se retirou, o silêncio foi quebrado por risos e assovios mas o professor conteve a quebra de disciplina soando energicamente a campainha da mesa.
Observei que a sala era ampla e tinha quatro fileiras de carteiras de dois lugares, todas ocupadas. Só havia uma carteira vazia. A primeira de uma das fileiras. Foi nessa que o professor mandou que me sentasse.
A reação iniciada pelos alunos, e contida pelo professor, me desconcertou bastante, mas procurei compreender. Eles estavam ali desde o início do ano escolar, submetidos, a maioria deles, a um regime de internato rigoroso. E de repente aparece, no início da primeira aula da manhã, levado pelas mãos do padre diretor, um fulano da roça, magro, miúdo e amarelo, e mais novo do que eles, com cara de capiau e uma roupa velha desirmanada – casaco de uma cor, calça de outra, e curta, batendo nos joelhos. E com uma ferida na perna, amarrada com um pano branco.
Aqueles jovens, criados em liberdade nas fazendas dos pais e agora submetidos a um regime de clausura, viviam entediados, ávidos por uma novidade qualquer que quebrasse a rotina cansativa a que estavam submetidos. Minha presença, nas circunstâncias em que ocorreu, foi um prato cheio.
Eu não os condenava. Mas preferia não estar ali naquela situação. Mas meu pai me mandara vir. Cabia-me enfrentar os problemas. E tentar superá-los.
Estava eu imerso nessas reflexões quando meu primo Olympio pediu licença ao professor e veio sentar-se a meu lado.
E a aula prosseguiu.
Quando o polaco, que substituía o sino, tocou, anunciando o recreio, o professor me reteve a fim de completar o preenchimento da minha ficha escolar. E quando me liberou, faltava pouco para o recreio terminar.
Mesmo assim saí para o pátio e logo se aproximaram alguns alunos e um deles me perguntou o nome.
– Luiz – eu respondi. – E ele, a sorrir, foi dizendo, sob o aplauso dos presentes:
– Luiz, catibiribis, serra matutís, firifirifís ...
Desapontado e surpreso, ao ser alvo daquela brincadeira que não conhecia, senti, logo a seguir, duas pancadas fôfas no alto da cabeça. Vim a saber depois que eram as tais de cacholetas, pancadas deferidas com as mãos cruzadas em conchas, que o brincalhão desfere, por trás, na cabeça do agredido. Voltei-me rápido, para verificar quem era o autor da brincadeira de mau gosto mas todos na roda estavam a rir e eu não pude identificar ninguém. A seguir soou o polaco e voltamos todos para a sala de aulas.
Às 11:00 horas eu e o Olympio saímos juntos, ele a lamentar o comportamento dos colegas e eu a dizer-lhe que não se preocupasse com isso.
Às 13:00 horas estava de volta. Com minha roupa da roça e a ferida na perna. E de mãos limpas, como viera de manhã. Eu era o pato feio no meio daqueles veteranos alegres e brincalhões.
A disposição dos alunos, na ocupação das carteiras, considerava a idade e/ou a altura de cada um. Os menores e mais novos à frente e os maiores e mais velhos ao fundo. Para facilitar a visão de todos. Para mim, como já disse, foi designada uma carteira da frente, que estava vazia. Meu primo Olympio pedira licença ao professor e viera sentar-se a meu lado.
Todas as matérias do curso eram ministradas pelo professor Firmino Velloso, um cidadão moreno, magro e de boa altura, que não ria. Era competente. Mas carregava a fama de mau. De massacrador. Ele recebera dos padres a tarefa de disciplinar aqueles rapazes habituados a lidar com cavalos e bois, nas propriedades rurais dos pais e que todos os anos se matriculavam no colégio em regime de internato. Para que, ao alcançarem o primeiro ano ginasial, já estivessem condicionados para assimilar as matérias do curso de Ciências e Letras, que credenciava o aluno a prestar o exame vestibular para o ingresso à Universidade.
Assim que tomamos nossos lugares, no segundo horário daquele meu primeiro dia de aula, o professor Firmino Velloso alisou o bigode preto, usando o dedo polegar da mão esquerda para alisar a metade esquerda do bigode. E os demais dedos da mesma mão para alisar a metade da direita.
Disseram-me, depois, que era um hábito dele, quando estava preparando alguma maldade. Parece que era assim mesmo, porque em seguida ele me encarou.
– Senhor Luiz – disse ele – Nós estamos aqui desde o início do ano escolar. E vamos ter exames para acesso ao ginásio em menos de três meses. O senhor está chegando inteiramente fora do tempo regulamentar. Não sei como conseguiu matricular-se. Isso não é assunto meu. Já verifiquei, pelas anotações que me passaram, que o senhor terminou o curso primário em 1928, em Pirapora, com nota 10. E dando por encerrado esse intróito, autorizou:
– Venha ao quadro. Vou argüi-lo sobre as matérias deste curso. – E usou a campainha para conter alguns assovios da turma.
Com a sala em silêncio, levantei-me, recebi o giz das mãos do professor, aproximei-me do quadro negro e voltei-me para ficar de frente para ele.
E teve início o massacre. Português. Matemática. História. Geografia. Ciências Naturais.

Como compareci às aulas do Curso de Admissão ao Ginásio, em agosto de 1930. Foto feita no quintal do tio Basílio, próximo ao pé de urucum. [foto]

O que aconteceu eu posso resumir em três palavras: dei um “show”. Que os meus filhos, um dia, ao lerem esses apontamentos, pois é para eles que os escrevo, me desculpem. Mas não posso deixar de ser fiel ao acontecido. Tive realmente um desempenho excelente naquela sabatina. A partir do primeiro momento, após minhas primeiras respostas, de viva voz ou por escrito, no quadro negro, um silêncio total tomou conta da sala de aulas. Só se ouviam a voz roufenha do professor Firmino Velloso e minhas respostas.
No final da aula muitos alunos se aproximaram de mim. Queriam saber de onde eu era, quem eram meus pais, o que eu fazia em minha vida. Queriam ser meus amigos. Eu havia conquistado o respeito daqueles brincalhões, que passaram a aceitar-me como colega e não como intruso.
Em novembro houve os exames. Eu fui o segundo colocado entre os aprovados. A partir daí ninguém mais me afastou do primeiro lugar, até eu ser obrigado a deixar os estudos, por falta de recursos para custeá-los, quando já estava matriculado na quarta série, em 1934.


(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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