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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 23 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Aquela viagem foi uma aventura, dizia a minha mãe.

Ruth Tupinambá Graça

Janeiro de 1918.
Eu tinha apenas 4 meses, era a terceira da minha família. Meu pai era agrimensor e casando-se muito cedo, tinha que se “virar” para dar conta das obrigações de pai de família.
Nossa cidade era de uma pobreza e atraso de fazer dó, ele então resolveu tentar a vida em outro lugar e aparecendo uma chance em Várzea da Palma, se entusiasmou. Embora esta cidade fosse menor e menos civilizada do que a nossa Montes Claros, a ferrovia dava-lhe certas vantagens e algumas oportunidades.
A maior dificuldade para a nossa mudança era o transporte da família.
Estradas não existiam, apenas os carros de bois (nosso único transporte) conseguiam vencê-las. A única opção era o cavalo.
Meu pai levou vários dias preparando a viagem que seria longa, com paradas obrigatórias para pernoites.
Os animais foram escolhidos a dedo: Mansos, bons de sela e de cilhão (que era imprescindível) pois naquele tempo uma mulher se escanchar as pernas numa sela era um verdadeiro escândalo.
Precisava também arranjar dois ajudantes e um cozinheiro, para o trabalho durante o transporte. Mas o problema maior era o meu. Com 4 meses de idade o colo seria ideal, mas impossível numa viagem tão longa.
Naquele tempo as famílias eram muito unidas, filhos obedientes, excessivo cuidado com as mulheres (assim era em casa do meu avô) tanto que o filho mais velho era obrigado a acompanhar suas irmãs em qualquer circunstancia.
Meu avô muito sistemático, foi logo dizendo:
_ “O João irá acompanhá-los e poderá levar a caçulinha”.
Mas como? Eu era apenas um bebê não poderia viajar no “cabeçote” (frente da sela) como viajavam as crianças daquela época.
Meu tio João (irmão mais velho da mamãe) era um rapaz forte e treinado nestas viagens á cavalo, prontificou-se e garantiu que me levaria com todo cuidado.
“Mas como seria esse transporte a mamãe perguntou-lhe”.
Ele simplesmente respondeu:
_ “Com uma toalha em volta do meu pescoço, caída na frente como uma rede, uma acomodação confortável e sem nenhum perigo.
As minhas duas irmãs mais velhas, Fely e Maria, com 7 e 5 anos também não tinha condições de montar sozinhas durante tão longa viagem, poderiam cochilar. O jeito era viajar como “carga”, e num cavalo bem manso, foram colocados 2 caixotinhos, forrados com cobertores, (presos á cangalha) um de cada lado, e as duas se acomodaram e bem refesteladas, pois sabemos como crianças gostam de novidades e “viver perigosamente”. E assim tudo resolvido, naquela madrugada partimos.
A cidade ainda dormia, aquele sono tranqüilo que só acontece nas pequenas cidades do interior, sem carros e motos e os “conjuntos musicais”, com “shows” barulhentos, que batucam a noite inteira, perturbando o silêncio da cidade e o sono das pessoas.
Disse a mamãe que eu não dei o menor trabalho, a não ser as paradas para troca de fraldas e mamar, tarefa bem complicada para a mamãe e um descanso para o tio João.
A viagem corria bem, atravessando matas desertas e fechadas ouvindo apenas, o “troc-troc” das ferraduras dos animais no cascalho das tortuosas estradas e o canto triste dos pássaros escondidos entre os galhos dos enormes arvoredos.
No fim da tarde paravam a beira de um riacho e já descansados, comiam uma farofa de frango, os animais bebiam água e se relaxavam sacudindo as crinas, aliviados das selas molhadas de suor.
A noite chegava a e lua prateava toda a extensão, causando uma sensação de tranqüilidade amenizando o cansaço daqueles viajantes. Mais tarde acediam fogueiras para espantar os mosquitos e outros insetos, armavam as redes e ali pernoitavam.
Pela manhã, recuperadas as forças, quando o sol preguiçosamente surgia por trás cós montes , espalhando seus raios brilhantes por toda a floresta partiam novamente.
Somente um acidente aconteceu durante todo o percurso que durou quase uma semana.
De repente, depararam-se com uma velha ponte sobre o Rio das Velhas, na qual faltavam algumas vigas, Todos os animais, bem guiados, já alcançavam o final da ponte quando o cavalo que carregava os caixotinhos com minhas irmãs, tropeçou e afundou os pés em um dos buracos.
Foi um tumulto geral! Papai desceu imediatamente do cavalo e apressadamente agarrou um dos caixotinhos colocando-o a margem da estrada e voltou correndo para pegar o outro que já estava bem inclinado.
Foi um momento de grande aflição. Com auxilio dos ajudantes conseguiram retirar o cavalo.
Finalmente chegaram a Várzea da Palma. O papai se estabeleceu com uma grande pensão. Um ano depois a cidade foi atacada pela Gripe Espanhola, a terrível epidemia que matou quase toda a população.
Durante este período terrível da “espanhola” nasceu o meu irmão Domingos, forte e muito saudável. Felizmente nossa família não sofreu nada desta epidemia, mas o susto fez papai voltar correndo para Montes Claros. E mais uma vez o tio João armou a rede de toalha no pescoço para transportar o sobrinho recém-nascido. Mais tarde, eu já adulta ouvia sempre minha irmã Maria se queixando (só para encabular meu pai) e dizendo:
_ “Papai gosta muito da Fely porque pegou primeiro o seu caixotinho, enquanto eu poderia ter caído no rio junto com o, cavalo e me afogado”.
Coisas que acontecem (principalmente na infância) e das quais a pessoa jamais se esquece... mas, coitado do papai, ele não teve culpa.

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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