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montesclaros.com - Ano 25 - segunda-feira, 23 de setembro de 2024
 

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Mensagem: DESTINO OU CASTIGO?

Aos três anos, Tino era como todos os meninos de três anos. Falava errado, era curioso, fazia birras e brincava. Carretéis, sabugos, pedrinhas e cabos de vassouras, eram os brinquedos que a vida lhe dava, pois outros não podia ter. A diferença de Tino para as outras crianças de sua idade era uma tristeza de que ninguém sabia a causa. Pois decerto não entendia por que sua mãe vestia como a mulher dos funcionários mais graduados da Prefeitura, sendo seu pai apenas carroceiro. Nem por que ele saía tanto de casa. Nem por que os dois brigavam. Ouvia os insultos, os gritos e também não entendia por que se desentendiam. Tino encolhia-se a um canto, chorava baixinho. Se mamãe estava bem ou mal vestida, não sabia. Mas que era bonita e alegre, sabia. E quando voltava a calma, sorria com aquele sorriso triste.
Moravam do outro lado do rio, numa casa perto do Matadouro da Prefeitura. Lá, o gado era abatido para os açougues. Tiago levava as postas de carne na carroça, forrada de ramos verdes de árvores, a mesma que apanhava o lixo das ruas.
Depois do almoço Tino ia dormi. O pai ia para a Prefeitura, para o trabalho, a mãe ia para o rio lavar as vasilhas e alguma roupa. Quando Tino acordava, descia o trilho estreito de juntava-se à mãe. Brincava com as pedrinhas da beira do rio, perseguia lagartixas, parava para ouvir os passarinhos, extasiava-se com os soins. E ficava pensativo. Triste como gente grande que é infeliz.
Naquele dia, pouco antes da data das eleições, época propícia para certo tipo de mulheres explorar os candidatos, Belisa não foi lavar roupa nem vasilha no rio. Mal Tiago saiu, trancou a porta da frente, cerrou a dos fundos. E partiu para encontro.
Mais tarde, Tino acordou e desceu o trilho estreito até o rio. Olhou para um lado e para o outro. Chorou baixinho. Chorou mais alto. Um enxadeiro que limpava a roça de milho, um pouco mais acima, ouviu o choro sentido. Menino chora à toa. Continuou batendo a enxada, na terra seca.
O choro parou.
A mãe entrou em casa: “Tino! O diabinho deve ter ido pro rio. Tiino! Tiiiino!”
Só a carinha de Tino estava dentro do rio. As formigas passeavam no seu corpo e ele não chorava. ‘Tino! Tino!’
Sacudiu as formigas. Virou o corpinho frio. Carregou-o e subiu o trilho a gritar: ‘Eu sou uma desgraçada! Eu sou uma infeliz! Eu sou uma desgraçada!’
A cidade inteira foi ver o anjinho morto, o filho de Belisa, a mulher bonita que seduzia os maridos das outras. Foi para censurar, acusar silenciosamente, ou em sussurros. Mãe desnaturada. Foi castigo. Está pagando.
Ninguém refletia que os dias já estão contados nos céus e que os de Tino eram curtos. Tantas crianças já morreram e continuariam morrendo de desastres, crianças de mães santas e de mães pecadoras. O próprio nascimento de Cristo não exigiu o sacrifício de muitas crianças, para que se cumprissem as profecias?
Ninguém refletia. As circunstâncias da morte Tino tornavam a mãe culpada, criminosa, execrada, indigna de compaixão, apesar daquela dor desatinada, que se manifestava em lamentações: ‘Sou uma desgraçada! Desgraçada!’
Desgraçada mesmo, repetiam no íntimo as mulheres traídas. E não adianta chorar. É nisto que dá, viver atrás dos maridos da gente.
Vingavam-se todas as Belisa, mulher bonita, sedutora, de riso largo como as ancas, balançando na saia justa, quando ia à cidade. Agora estava ali, descabelada, arrasada, desgraçada mesmo. E o marido, sem dizer palavra, sem nada ouvir, olhava o chão.
Tino foi para o cemitério em um caixão azul, com acompanhamento maior do que o de um morto rico. A mãe foi, também, gritando, culpando-se.
A multidão a pé – pois até hoje, na cidade onde ocorreu o falto, não se usa enterro de carro – seguia o caixãozinho azul, do morto, símbolo do castigo para os puritanos de todos os tempos, que não se cansam de atirar pedras. A partir de então a mãe foi ficando cada vez mais triste. Dois anos depois, morreu.

(A professora Yvonne Silveira, de 96 anos, é presidente da Academia Montesclarense de Letras. Foi, durante décadas, professora de português, na antiga Escola Normal Oficial. É escritora, com vários livros publicados. Nascida em Francisco Sá, é um dos maiores nomes da história de Montes Claros. Participa, ativa e alegremente, de todas as atividades às quais é chamada, numa permanente disponibilidade que encanta a todos).

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