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montesclaros.com - Ano 25 - quinta-feira, 19 de setembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 25)

O CASO DAS SEMENTES DE CAPIM

Quando eu cursava o 3º ano ginasial, no Gymnásio Municipal de Montes Claros, os padres cobravam duzentos mil réis por trimestre. Eram três trimestres, total 600$000. (Era como se escrevia seiscentos mil réis). Correspondentes a 4 salários mínimos da época. Como referência, uma caixa de fósforos custava um tostão, ou 100 réis e um peão recebia 150$000 (cento e cinqüenta mil réis) por mês de serviço, correspondente ao salário mínimo de hoje.
Meu pai ainda vivia sob os efeitos da recessão de 1929 e não mandava o pagamento em espécie, mas em produtos da região, que eu negociava e fazia o pagamento ao Ginásio.
De uma feita ele me mandou 30 sacos de sementes de capim jaraguá, para o pagamento da parcela de um trimestre, já vencido.
Com o conhecimento da Estrada de Ferro na mão, saí procurando comprador. E encontrei o sr. Niquinho Teixeira, como era conhecido o fazendeiro de renome e farmacêutico Antônio Augusto Teixeira, formado pela Escola de Farmácia de Ouro Preto e irmão do médico Antônio Teixeira de Carvalho, o Doutor Santos, ex-prefeito de Montes Claros e nome de rua do centro, em nossa cidade. Ele disse que ficaria com as sementes de capim pelo preço de mercado. Resolvida esta parte, fiquei atento à chegada da mercadoria, na estação da Central. A mercadoria despachada como encomenda, incorre em frete maior, mas chega mais depressa. Acontece que vivíamos numa fase de máxima economia. Vivíamos espartanamente. Meu pai sentenciava: até pagar o que devemos, e recomprar a nossa casa de morada, que havia sido entregue em pagamento de dívidas decorrentes da baixa do algodão no “crack” de 1929, só podemos gastar com o nosso sustento. Nada de roupa, nada de sapato ou do que não seja alimento. E concluía: “do preciso, o mais preciso”.
De modo que o capim veio em despacho “como carga”, e não “como encomenda”. Mais demorado, cerca de 15 dias, de Várzea até aqui. Mas muito mais em conta. O meu cuidado em acompanhar a chegada tinha dupla conveniência. A primeira era apurar o dinheiro para o pagamento ao colégio. E a segunda era para evitar armazenagem, que passava a correr a partir do dia seguinte ao da chegada.
No dia em que a semente chegou eu estava vigilante. Contratei carroceiro e fiz a entrega ao sr. Niquinho Teixeira. Era num cômodo que servia de garagem e depósito de pequenos volumes, com portão aberto para a rua Camilo Prates. Eu fui chamá-lo e quando voltamos, juntos, o carroceiro já havia descarregado a carroça e carregado a primeira balançada. Seu Niquinho pesou essa e as outras balançadas, fez as contas, me pagou, e eu me despedi. Lá fora paguei ao carroceiro e desci a Camilo Prates, no rumo de casa. Ia pensando na vida. Tudo difícil. Meu pai em dificuldades, custando a sair da crise. Ele fôra dono da maior loja de Várzea. Comprava e vendia de tudo. Do toucinho e cereais à seda mais fina, com bom estoque de tecidos, ferragens, miudezas, como era comum na ocasião. E era grande comprador de algodão. Financiava os plantadores, aos quais fornecia crédito em caderneta, para receber na colheita.
Em 1929, na véspera da colheita, veio a grande depressão. O preço do algodão caiu de 30$000 a arroba para 6$000, mercado sem interesse. O café, no varejo, era vendido a 3$000/quilo. Caiu para $800. Foi uma quebradeira geral.
No caso do meu pai, houve queda de valor em todas as mercadorias de seu estoque. O comércio parou. Ninguém comprava nada, a não ser o que comer. O povo estava aturdido. Parecia o fim do mundo. Além da desvalorização dos estoques e da paralisação do comércio, o comerciante teve de enfrentar o grave problema de suas dívidas. Ninguém comprava o que o comerciante tinha para vender. Mas seus débitos vencidos eram cobrados com rigor.
No caso do meu pai, o seu capital estava nas mãos dos plantadores de algodão. Gente pobre, que trabalhava da mão para a boca. Eles iam colhendo o algodão e trazendo para pesar. Parte por conta do financiamento, parte para aquisição de alimentos. Todos, mas todos mesmo, ficaram devendo financiamento. Os bancos fecharam o crédito: a época era anormal.
Meu pai calculava que se vendesse tudo que possuía, incluindo estoques da loja, fazendas, gado e casa de moradia, mesmo por menos do valor, pagaria suas dívidas. Isso demandaria dois anos de muito trabalho, de muita conversação e muita paciência. E enquanto estivesse dispondo de suas cousas, iria procurando receber seus créditos espalhados com mais de uma centena de pequenos plantadores de algodão.
E assim fez. A loja, pouco a pouco foi se resumindo a uma pequena venda de gêneros e bebidas. Com aquele mundo de prateleiras vazias. A Fazenda foi vendida por 30 contos de réis. Valia, no mínimo, 100 contos. O gado foi com a fazenda, na bacia das almas. O último bem a ser vendido foi a casa de morada. Como era costume no interior, era casa de comércio e moradia. Havia 4 portas na frente, para a loja. E uma porta e janelas, de lado, de ingresso em nossa residência. Foi vendida por um conto de réis. A verdade é que ninguém podia agradar a ninguém, porque todos tinham os seus ajustes.
Mas meu pai continuava ocupando a casa, pagando aluguel de 30$000 por mês, ou seja, o equivalente a juro de 3% ao mês, até poder recomprá-la, o que fez, 4 anos depois.
Naquelas alturas, de meu 3º ano de ginásio, a coisa continuava feia. Eu pressentia que aquele seria o meu último ano de estudo. Meu pai não teria condições para continuar pagando seiscentos mil réis de ginásio por ano, para mim. Minha tristeza era maior porque eu era o primeiro da turma. E ia parar.
Mas, não havia andado mais que três quarteirões, quando olhando a conta verifiquei que lá estava escrito, com a letra do sr. Niquinho: 32 sacos de sementes. Eu me lembrava bem que no conhecimento de embarque estava escrito 30 sacos. Se o comprador me pagara 32, estava errado. Meu dever era voltar e corrigir o erro.
Voltei. Bati palmas na porta. Seu Niquinho era homem de pouca conversa, muito sisudo. Tive receio de falar com ele que a conta estava errada e ele correr comigo aos gritos. Por isso fui com muito jeito. Quando ele chegou à porta, eu fui dizendo, com voz mansa.
- Seu Niquinho, acho que o senhor me pagou a mais. Eu queria que o senhor conferisse a conta.
Ele olhou a nota que me dera, conferiu os cálculos, e me devolveu a nota, dizendo. Tá certo, menino. Pode ir embora.
Eu insisti.
- Meu pai me mandou 30 sacos de sementes e o senhor está me pagando 32. O senhor quer me levar no armazém, para eu conferir?
Ele deu um sorrizinho, coisa rara naquele homem casmurro. E ao virar-se para dentro, me disse:
- Vem comigo!
Eu o segui, agora por dentro da casa dele. E fui observando a casa: salas grandes, espaçosas, muitos armários, muito vidro, sofás, retratos nas paredes, casa de gente abastada. Da sala de jantar saímos num pátio, cortamos rumo por um passeio cimentado, e chegamos ao depósito/garagem. Ele entrou na minha frente, parou diante da pilha de sacos de sementes, contou-os e me disse:
- Tá tudo certo. Olha aí, 32 sacos.
Eu contei por minha vez. E lá estavam os 32 sacos.
E vendo os 32 sacos, eu pensei: alguma coisa está errada. Meu pai mandou 30 sacos, eu só tenho direito a 30 sacos.
Observei bem os sacos. Porque há uma particularidade nos sacos que contém sementes de capim Jaraguá. É que as sementes atravessam o espaço existente na trama que forma o tecido de aniagem de que são feitos e ficam saindo para fora. Em todos aqueles 32 sacos havia as pontas das sementes pelo lado de fora.
- Vamos embora, moço! - Falou o sr. Niquinho. - Você é um menino direito. Já provou isso. Agora vamos embora.
Eu continuava quebrando a cabeça com aquele enigma. E ousei propor:
- O senhor me deixa desmanchar a pilha?
- Desmanchar pra que?
- Para conferir, eu disse. - Eu arrumo de novo.
- Conferir mais o que, menino?
Mas ante a minha insistência, e por certo ante a disposição que sem dúvida eu demonstrava, de alguém que sabe o que tem a fazer, e não cede, ele, embora não convencido, concordou:
- Pode desmanchar.
Eu meti mãos à obra. Fui desempilhando de um lado e empilhando do outro. Na última carreira de sacos, na que estava por baixo dos outros, encontrei 2 sacos mais pesados do que os demais. Separei-os. Externamente eles ofereciam a mesma aparência dos outros, cobertos das sementes que a eles haviam aderido pelo contato. Mas forçando a costura que os vedava, por ali meti a mão e verifiquei que não continham sementes. Continham sacaria vazia. Eram o que se denominava de “mala de sacos”.
O sr. Niquinho, admirado, exclamou:
- Agora me lembro. Havia duas malas de sacos(*) aqui no meio do depósito. Por certo o carroceiro descarregou os sacos de sementes em cima deles e na hora de pesar se esqueceu e colocou todos na balança.
- Deve ter sido isso, eu disse. E apanhando as duas malas de sacos, coloquei-as, por minha vez, na balança, entregando a ele a nota e o dinheiro que ele me havia entregue.
- O senhor pode pesar estes dois sacos e fazer o desconto na nota e no dinheiro.
Depois de refazer as contas e me entregar o pagamento, ele me olhou bem de frente, ali naquele depósito de coisas de Fazenda e me disse:
- Menino, fale com seu pai que fiquei te conhecendo. Você é um homem!

(*) Mala de saco: encapado de sacos, geralmente 49 sacos vazios bem dobrados e ensacados em um saco maior, com a boca costurada.

FORA DA ESCOLA

De 1933 a 1939 fui trabalhar onde não havia escola noturna.

SEIS ANOS DEPOIS

Seis anos depois consegui voltar a uma sala de aulas. Eu trabalhava em uma casa comercial, em Juramento, desde 1936, quando soube que havia sido criada uma Escola de Comércio em Montes Claros, com aulas noturnas, para quem trabalhasse durante o dia. Passei a movimentar-me no sentido de transferir-me para Montes Claros, onde cheguei em 1938 e me matriculei, em 1939, no 3º ano propedêutico, que precedia o curso comercial.
A escola adotava a prática de dois exames no ano, no final de cada semestre. Um no final de junho, com provas escritas, e outro, no final de novembro ou início de dezembro, com provas escritas e orais. Eram seis as matérias do currículo. Estávamos no final de junho, no ano de meu ingresso na escola e já havíamos feito as provas de cinco matérias. As aulas iam das 19:00 às 22:00 horas. No dia em que íamos fazer a última prova, ao chegar de manhã à empresa onde trabalhava, fui informado de que ocorrera um estremecimento no mercado do feijão e eu deveria embarcar no trem das 11:00 horas para Buenópolis, onde desceria para trabalhar na praça e a seguir regressaria parando nas estações intermediárias, para vender o estoque de feijão da firma. Quando regressei, na semana seguinte, o resultado das provas estava exposto no pátio interno da escola. As minhas notas causaram admiração em toda a escola. Eram seis as matérias. Eu havia obtido nota 10 em cinco delas e zero na sexta.
Cursei a escola por 4 anos, durante os quais mantive a rotina do primeiro lugar. Em 1942 recebi o diploma de perito-contador, com nota 10.
No governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra foi promulgada uma lei que permitia aos contadores acesso aos cursos universitários mediante prestação de exames vestibulares. Era a equiparação dos contadores aos diplomados nos cursos clássico e científico, da última reforma do ensino, para efeito de ingresso nas universidades.

(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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