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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 24 de setembro de 2024
 

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Mensagem: Menino de rua

Ruth Tupinambá Graça

Menino de rua, infelizmente você existe e persiste. Espezinhado, maltratado, roupas em farrapos, pés descalços, faminto, vocês é o retrato da nossa displicente assistência social.
Como os lírios do campo que brotam na terra ressequida após as queimadas, e crescem maravilhosos, com suas pétalas sedosas e encarnadas num contraste com a terra esturricada, assim também você, menino de rua, nasce dos meios mais sujos e miseráveis, numa promiscuidade repugnante.
Mas você nasce puro, belo como os próprio lírios, porque todas as crianças nascem boas mas a sociedade e o meio as corrompem.
Filho sem pai (porque pai é aquele que assume a paternidade de seu filho) de mães solteiras, na maioria alcoólatras inveterados, sem lar e sem pão.
Você dorme debaixo das marquizes dos viadutos, das árvores, apinhado com irmãos menores e a mãe recendendo cachaça, encolhido, tendo como leito o chão frio, como teto um céu estrelado...
Você existe sim, menino de rua, mas a humanidade o ignora, não o vê, porque o pior cego é aquele que não quer enxergar... porque não lhe convém.
Cansado e rasgado com a barriga vazia, você perambula pela cidade em busca do pão encostando-se aos portões dos bares e restaurantes, catando sobras de comida nas latas de lixo.
Você existe sim, menino de rua, mas você não tem nome. Despersonalizaram-no.
Você é hoje, simplesmente, um pivete (um perigo para a sociedade) assustando as madames, quando num gesto faminto, você procura tirar-lhe a bolsa, e apavorando as crianças quando, com olhos agressivos e curiosos você tenta dar uma voltinha na caloi (seu maior desejo) ou num patinete.
Ninguém o perdoa por esse gesto e o castiga esquecendo-se de que você é também criança e que brincar é um direito seu.
Você, menino de rua, aprendeu a roubar para matar sua própria fome, e a frieza e indiferença da sociedade fizeram da você um marginal.
Você se tornou precoce na escola da vida, conhecendo muito cedo a maldade dos homens que, ao invés de colocá-lo numa escola com assistência social própria para sua idade jogam-no nas deprimentes prisões, sob castigos e torturas que o tornam cada vez mais agressivo e revoltado.
Prisões onde o menor se torna mais viciado ainda, e muitas vezes são forçados por presos tarados e anormais, a satisfazer seus instintos sexuais animalescos e então, os delinqüentes se multiplicam.
Você existe sim, menino de rua, em vésperas de eleições e com toda a demagogia política, você é então lembrado, quando milhares de candidatos se aproveitam da boa fé dos eleitores usando o menor abandonado como um dos temas principais das suas campanhas.
Durante meses seguidos se lembram de você, os jornais, revistas e televisão nos dão à impressão de que falam a verdade, prometendo minorar seu sofrimento, dando-lhe moradia, alimento e instrução, enfim, uma assistência completa.
Mas, eis que as eleições se findam e com elas, a vergonhosa campanha das promessas e barganhas...
Os derrotados nada têm a fazer. Perderam, portanto, estão livres dos compromissos... e os vitoriosos, os marajás, preocupam-se somente com as ascensões, ocupando os mais importantes e rendosos cargos, empregos paras os afilhados e interesseiros eleitores.
Os problemas asfixiantes do governo são adiados, e o menor abandonado, ponto alto da campanha eleitoral, cai no ostracismo, ficando todas as promessas nos palanques...
Mas existem ainda, pessoas conscienciosas, que acreditando nas promessas, insistem no problema na esperança de uma solução. Vão para a televisão, nos mostram casos angustiantes, a degradação em que vivem estas crianças sem lar, sem família, sem amor, os jornais e revistas exibem fotografias deprimentes. Os órgãos de assistência social mais credenciados, nada fazem, esperando verbas que nunca chegam, ou se atrasam. A justiça para o pobre não existe. O pivete é o zero à esquerda. Ninguém o defende, ninguém fica do seu lado, acusam-no e os pivetes se multiplicam.
Em quem poderão estes infelizes se apoiar e em quem confiar?
Por acaso alguém se lembra de oferecer-lhe um prato de comida, quando estão morrendo de fome e inanição? E roupas para cobrir seu corpo sujo, tostado pelo sol e maltratado pelo vento frio das altas madrugadas ao relento?
Crescem agressivos, revoltados, carentes de tudo, sem o amor dos pais e a tolerância dos adultos.
Quantos tentam ser gente (aqueles que de qualquer maneira tiveram alguma orientação) procurando um trabalho, engraxando ou lavando carros. Outros, arriscando a vida, atravessam os sinais e se aproximam tentando vender frutas em saquinhos, doces balas e até bijouterias.
Mas não há cooperação. As pessoas são trias, indiferentes. Estão muito preocupadas com os negócios, os milhões, as festas, o futebol e nunca com os pivetes. Não lhes dão atenção, pelo contrário, desestimulam e até os maltratam.
Abre o sinal e os carros partem, como flechas, deixando-os com os braços estendidos numa eterna imploração e os olhos cheios de mágoas e decepção.
Você, menino de rua, você insiste em sobreviver, investindo contra a miséria humana? Até quando?
Só mesmo um milagre poderá mudar sua sorte. Enquanto isto que o pivete se dane, multipliquem os delinqüentes e morram crivados de balas, aos olhos de todos, como aconteceu ao pobre e infeliz Pixote!

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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