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montesclaros.com - Ano 25 - quinta-feira, 28 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Um Didal de Irineu Para uns, um ninguém. Para outros, um truão, um mentecapto. Isolado, disjunto, iletrado, isto ele é. Como mesmo diz: - não faço nem o “ó”. É mudo e mouco para este mundo apressado, máquino. Desconhece nossa vida elétrica, internética, televisiva. Ignora leis, política, papéis, carimbos, documentos. Não sabe sua idade, mas, se entrega: - Na grande cheia de setenta e nove eu era rapazim, fiquei apartado na Boleira, do outro lado do rio por luas, comendo só quiabo da lapa e samambaia cozida em enchu de galinha. É devoto e doutor em formigas, árvores, passarinhos e besouros. Segue abelhas, pacientemente, atrás de favos de mel. Protege os insetos e não mata lagarta porque ela concebe as borboletas. Afirma categoricamente que alguns paus viram insetos e uns insetos quando morrem viram paus. Dá mansas e longas aulas sobre quebranto e mau olhado. Silencia-se, com olhar esconso, para decifrar pios e grunhidos. Conhece o tempo, o vento, as nuvens. Vigia o revoar dos pássaros, o canto da coãn, o colorido do céu, o deslize do rio. Sabe quando chove e quando estia. - Vai parar de chover! - Por que, Irineu? Está invernado há dias. - Oh, olha aí as tanajura! Elas tá largano as asinha por tudo quanto é lado. Essas bichinha são danada de protegida, quando elas aparece, estia. O céu amanheceu anil. Alguns o acham um mané, um migué, um qualquer. Coitados, passarão a vida na ignorância, sem conhecer os mistérios e os encantos contidos na matuta cachola do sábio catrumano. Calado fica de tanto ouvir as asneiras e baboseiras dos citadinos. Só abre a boca afiançado e se for muito instigado. - No garimpo você reza para achar a pedra grande? - Moço, que é isso? Diamante não apreceia reza, não! Diamante gosta é de sangue, de confusão. Ouro é mais carola, é diferente, pegá com Deus é um djutóro bom pra bamburrar. Depois de um espirro, perguntei: - O que cura gripe, Irineu? - Quem gargareja urina de muié veia de madrugada num gripa nunca. - Mas não serve urina de mulher nova, não? - Não! - Mas por quê? - Muié nova num tem as “mardade”. Dias desses caminhávamos na beira do rio, quando fui alertado: - Olha o cipó! - Cipó, que cipó? - Na sua frente, moço, cuidado! - Viche Maria! É uma cobra! - Psiu! Não fale este nome! Ela num sabe que é peçonhenta, não. Se sabê, aí de nós! Eu o conheci quando comprei uma terrinha num canto formoso do vale jequitinhonho. Era mata pura, rio límpido e mil criaturinhas – bichos, insetos, plantas, peixes, pássaros, que me foram por ele nominados e apresentados um a um: - Monjolo é madeira ispicial pra chão e brejo, já pereio é o pau pros cabo das ferramenta; o chá de barbatimão é cicatrizante e bom pra lavá as partes das muié; o burro é o animal que foi pra escola, dá aula pra cavalo; quando a vaca cruza na lua cheia o bezerro nasce macho; arapuá é boa para ezipa; pra tirá cascão de pé de gente, bom é esfregá jenipapo verde; bicho de se preocupá é taturana, é uma lagarta que faz homi mijá perna abaixo e se não acudi mata criança pequena; banha de sucuri serve pra torcicolo... Num jorro contínuo de sabedorias, foi me explicando a natureza em detalhes. Em simpatias, então, é uma sumidade: - Pra não abortá é só colocá sobre o telhado uma caixinha com maribondo; pra fazer minino pequeno falá basta dá água pra ele em sineta de igreja; se a muié tá entulhada na hora do parto, a gente deve abrí as cancela, se não der certo, abri as janela e as porta, e se continuá encalhada, vai destelhando a casa pra dá passagem... Nesta toada ele me fez ouvir todo tipo de sapiências e mil maravilhas. Tenho tomado nota de tudo, inclusive aprendi a usar um mundo velho de remédios: guapo, poejo, tipi, batata de purga, papaconha, calumba, macela, mastruz, alcanfor do campo e outros tantos, e, aqui para nós, estou até ficando craque em rezas e benzeduras. Mas no começo de nossa convivência, como eu não tinha casa no Alecrim, deixava meus trecos – bicicleta, bóias, coletes, caiaque – com ele, que os guardava zelosamente em um dos seus cômodos. Quando chegava, era o primeiro lugar que eu passava, para pegar alguma das tralhas, filar uma boa prosa e encomendar um frango com ora-pro-nóbis, para comer no finalzinho do dia. Sua casa era de chão batido, o piso esfregado com o esmeraldino esterco bovino e as paredes clareadas com tabatinga. Seu porco Filomeno tinha trânsito livre, porém usava um espetado brinco de arame no nariz, para impedi-lo de futucar e esburacar o chão. As galinhas dormiam empoleiradas pelos cantos, a do choco se aninhava confortavelmente num velho forno de um inativo fogão a gás. As rapaduras apuradas com abelhas petrificadas ficavam dependuradas acima do fogão de lenha. Perguntado como ele aproveitava as rapaduras com tantas abelhas grudadas, respondeu de pronto: - No café, elas fica no coador. Num janeiro, época em que findam os mantimentos, me comovi com a carência remoída há meses por um malogro no garimpo, tristemente escancarada nos miúdos filhos e na mulher Maria, ossos à vista. Fui à cidade e comprei saco de arroz, feijão, açúcar, caixa de óleo, macarrão, café – feira farta, sacudida, para eles. Sumi em meus afazeres montesclarinos por uns vinte dias. Ao voltar e passar em sua casa, com o sentido em pegar o colete para descer a cheia do rio, perguntei: - Cadê minhas coisas? Ele disse: - Estão aí, no mesmo lugar. Ao entrar no cômodo onde entulhavam as minhas tralhas, deparei com todos os sacos e caixas de alimentos intocados. Sem entender, indaguei: - Vocês estão doidos? Porque não usaram a comida que lhes deixei? Assustado, respondeu: - Uê, mas era sua... - Que isso, Irineu? Eu comprei para vocês. Par de lágrimas deslizaram dos olhos da bambeante Maria, abraçada em amparo pelos meninos. Quando levei sua família à Diamantina, foi a primeira vez que os seus filhos saíram da roça. Ao chegarmos numa lanchonete para merendar, os três pequetitos, Ozéia, Onofrim e Paulim, mergulharam no piso de cimento queimado e nadaram de braços abertos, esfregando seus corpos e faces naquela lisa superfície. Era a inocência, cheia de risos e de encantamento. Na volta, no carro, perguntei: - Irineu, você já viu televisão? Ele deu um tempo e depois respondeu, seguro: - Já! - Você viu onde? - Vi no Alecrim. Tava desligada, mas eu vi! No final da viagem, ao despedir, disse-me: - Ucho, a vida me ensinô que tem dois tipo de gente: os que agradece e os amuado. Eu aprendi a agradecê. Eu também. Bendito.

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