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montesclaros.com - Ano 25 - quarta-feira, 8 de maio de 2024
 

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Mensagem: BAIXADA DA SANTA CASA (3ª parte) A encascalhada Rua Irmã Beata era usada como corredor de bois para o matadouro Otani. Ao ouvir o toque do berrante repicado amadrinhando a boiada e ao avistar de longe a poeira em nuvem levantada, todos corriam para dentro de suas casas. Das janelas, portas e varandas, a meninada arreliava o tropel esquentado, bufante, torcendo por um estouro ou por um desatino de uma vaca mais doida, que não raro saltava a mureta de uma casa e fazia um escarcéu no jardim. Passado o tumulto, a rua ficava toda esverdeada, salpicada de estrumes, que deixavam o rastro e um cheiro de curral. Essa nem tão beata rua foi uma chocadeira de artistas. Dali saíram vários músicos e compositores. Depois da casa de Baixote morava Dona Carlota(15), mãe de uma porção de gente, inclusive de Tadeu, artista polivalente, mambembe, circense, itinerante. Rodou o país como músico, teatrólogo, hippie, artesão e o escambau. Viveu e bebeu a vida como poucos. Sempre alegre e criativo. Seu irmão, Dirceu, foi-se novo. Outra das minhas primeiras sentidas mortes. Mas a figura que habita o melhor da minha lembrança é Vicença, uma velha empregada, que passou a vida na casa de Dona Carlota. Era compacta, cheia, rosto redondo, despachada, alegre e conversada. Entendia-se bem com os adultos e dava conta da vida da meninada inteira. Sabia dos malfeitos, das brigas, dos romances e de todos os fuxicos e intrigas, mas não entregava ninguém. Amigona da garotada, sempre alertava: - Ó, soverte, sua mãe está atrás de você. - Cuidado, Seu Cristóvão está sabendo que você passou bosta na chave do relógio da casa de Dona Piluxa. - Os meninos já desceram para jogar bola. - Fulaninha tá dando mole procê! Acoche! Era o cupido da safadeza. Estimulava e dava guarita pras malinagens. Sabia de tudo, mas sempre de bico calado. Não entregava a criançada, que confiava nos seus conselhos e dicas. A casa seguinte era a de Cori Gonzaga(16), a eterna criança. Desde pequeno já participava das molecagens dos mais velhos. Não era o artífice, mas cúmplice, sempre xereta. Cedo pendeu para música e para os atrativos da noite. Adolescente, percorreu o Brasil com o Grupo Raízes. No compor músicas belíssimas procurou inspiração em muitos venenos e volta e meia calcava o pé no coentro. Uma vez, ao sair de casa à noite, deparei com Cori sentado sozinho no murinho. Triste. - E aí, meu poeta, como vão as coisas? - Ô, Ucho, eu não tô bom não. Cê acredita que eu esqueci o nome de mãe? O jeito foi recomendá-lo ir para casa tomar um copo de leite e dormir. – Amanhã conversaremos, Cori. Outra feita, num velório na Santa Casa, Cori, que morava ao lado, apareceu para ver quem era o defunto. Manso, chegou junto ao caixão e perguntou a um dos familiares: - Ô, Nem, o compade aí morreu de quê? O parente, sentido, em voz baixa, respondeu: - Já estava doente há muito tempo. Cori arrematou: - Ah, então já tava carunchado, né? Casa cheia era a de Seu Juquita Queiroz(17). Fábrica de artistas e músicos. Tudo pedra noventa. Era gente que não acabava mais. Recordo do Seu Juquita sempre formal, bem vestido, educado, elegante. Cumprimentava todo mundo, levantava o chapéu para as senhoras e tinha trato até para as crianças. Canarista e amigo do meu avô Pacífico, que sempre remoía: Todo criador de canário da terra é gente boa e séria. Pode confiar. Uma vez, Seu Juquita, ao chegar em casa, deparou com um menino em cima do muro contemplando o por do sol. - O que você está fazendo aí em cima do muro, jovem? O garoto pego de surpresa: - Ahn? Seu Juquita, curioso, indagou de novo: O que você está fazendo aí em cima do muro? O rapazinho respondeu, brandamente: - Tô de bobeera. - De bobeira? Como assim? À tarde, sempre passava um vendedor gritando: - Olha a paçoquinha! Olha a paçoquinha! E em certos dias, frisava: “Hoje tem! Hoje tem!” Os desinformados achavam que ele anunciava que quem comprasse sua mercadoria afrodisíaca ia ter uma caliente noite. Mas para os entendidos, avisava que naquele dia ele estava abastecido com outras especiarias mais alucinantes e contemplativas. Existiam outros ambulantes vendedores de guloseimas para a molecada. Um era Mazzaropi, que de longe tocava sua corneta estridente avisando a chegada de sua deliciosa iguaria – “Olha o quebra queixo da Bahia, quem tem dinheiro compra, quem não tem espia..... Burlesca e ao mesmo tempo fúnebre era a doceira Pacífica, sempre de luto, vendendo pés de moleque, doces de leite, cocadas brancas e pretas. A dupla concorria com os vendedores de pirulitos em cones de rapadura derretida, envoltos em uma fina película de papel manteiga e encaixados nas dezenas de buraquinhos de uma tábua furadinha que ficava pendurada no pescoço do ambulante. De noitinha, apareciam pipoqueiros na Praça da Santa Casa, com os amendoins achocolatados, os cocos caramelizados, os algodões doces coloridos e os tradicionais roletes de cana caiana. Mas o suprassumo das gostosuras era a bala de puxa das Irmãs do Imaculada. Na fissura de refrigerantes, bebida rara naquela época, saíamos de casa em casa atrás de garrafas e litros para trocarmos pelo guaraná da fábrica RC, que por um tempo funcionou na Rua Irmã Beata. Dividíamos a bebida, gole a gole, sem nojo ou higiene. Lá perto tinha também uma das delícias de Montes Claros, a paçoca de Dona Teresinha Vasconcellos(18), muito apreciada pelos adultos. Doces não eram vigiados. Os adultos adoravam ver os pequenos comerem fartamente. Até incentivavam a comilança. Ninguém preocupava com obesidade e nunca vi criança fazer regime. A meninada era ativa, não ficava parada. As brincadeiras aconteciam na rua e despendiam muita energia. Íamos a pé ou de bicicleta por todo o canto da cidade. Brincávamos até o anoitecer e nossos pais desconheciam o nosso paradeiro. A patota era unida e havia regras que eram seguidas à risca, pois todos tinham o sentimento de pertença a baixada e se orgulhavam de ser da turma. Continua... NOTAS: (15) D. Carlota, mãe de Tadeu, Dirceu, da grande mestra Edméia, de Dilma (namorada de Beto Viriato), Fredo, Frido, Lindéia e Dílson. E a empregada Vicença. (16) D. Clarice, viúva de Antônio Gonzaga, pais de Cori, Antonina, Sandra e Artur. (17) Seu Juquita Queiroz e D. Lia, pais de Ruy Bongô, Dino, Marcos (Juquitão), Juquitinha (Nuné), Rosa, Amália, Marly, Olívia, Suzana e Silvia. (18) D. Teresinha Vasconcellos, mãe de Cláudia, Sônia, Tina, Juliana e Leonardo. 3

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