ANTIGO CINE MONTES CLAROS - "Minha filha, vá dormir, para você ir ao cinema. Hoje é quinta-feira, continuação da série "O Cavaleiro das Sombras", com William Desmond...” Era a voz tão querida do papai advertindo-me de que, se quisesse ir, teria que "puxar um ronco", porque as sessões daquele tempo terminavam com a primeira cantada do galo. Papai adorava cinema. Trabalhava medindo fazendas, era agrimensor, e nada o segurava no acampamento nas quintas-feiras. Viajava oito a dez léguas no lombo de um burro para não perder os filmes seriados. Oh, como esperávamos, cheios de ansiedade, o dia de irmos ao cinema! Era só uma vez por semana. E que saudades eu sinto agora do nosso pobre Cine Montes Claros, tão desprovido de beleza e conforto! Funcionava a reboque, graças ao esforço tremendo e incalculável dos seus primeiros donos. Um grande galpão com bancos compridos, assim era ele. Uma campainha começava a tinir logo que anoitecia, avisando a população de que naquela noite haveria sessão. Quase todas as famílias se movimentavam, aos bandos, enquanto as empregadas e as crianças iam à frente, levando as cadeiras numa correria procurando se localizarem o mais perto possível da minúscula tela. O cinema contava com poucos lugares bons e às famílias mais exigentes era permitido levarem suas cadeiras de palhinha. E ainda vejo entrando na praça Dr. Carlos, atravessando o jardim mal gramado e cercado por fios de arame farpado, as famílias de seu Chico Peres, seu Mário Veloso, João Fróes, de Etelvino Teixeira, e mais embaixo seu Antônio dos Anjos, Fróes Netto, Juca Salgado, seu Carlos Sapé, todos moradores da pequenina e singela praça Dr. Carlos... O papai levava-me pela mão, eu era ainda bem pequena e ia pulando alegre, de pedra em pedra, escolhendo as mais altas daquele interminável "pé-de-moleque", enquanto minhas irmãs mais velhas e já mocinhas, iam ao seu lado, muito compenetradas e já de salto alto e "boquinhas de coração". O cinema enchia. O barulho do motor desorientava a gente, mas, mesmo assim, todo mundo conversava em voz alta, animadamente contando anedotas, fazendo "negocinhos", trocando palpites para o jogo-de-bicho completamente à vontade, como se estivesse em casa, enquanto esperávamos pela fita. Nego do Ó, Zé Maniquinista e Manezim Enjambrado iam sempre buscá-la em Bocaiúva, pois, eram os heróis do volante e únicos possuidores do "Fordeco 24". João Cândido (irmão do Juca de Chichico) era uma grande alma, um destes tipos inesquecíveis que toda cidade possui. Prestimoso e inteligente ao extremo, era o operador do Cinema Montes Claros. Entendia de projetores e motores sem nunca ter saído desta terra, arranjava sempre uma folgazinha e vinha conversar com espectadores, atendendo uns e outros no que fosse possível, procurando distraí-los com sua experiência. De vez em quando, o empresário João Paculdino passava afobado e vermelho e, atravessando o cinema, ia lá na frente dar uma satisfação pelo atraso: - "A fita já está nos Paus Pretos, dizia ele, e não demorará muito a chegar, mais um pouco de paciência"... Não existiam estradas, e os "chaufeurs" faziam milagres. Depois deste aviso ainda esperávamos mais de duas horas. A meninada já cochilava, empanturrada com amendoins e pipocas e, nestas alturas, o cinema desabava com a molecada assoviando, batendo nas cadeiras e jogando cascas de amendoins em todas as direções. Dulce e Adail Sarmento, Tonico de Naná, Artur dos Anjos, bem humorados, esmeravam-se nas melodiosas valsas. Era pena que os namorados não tivessem a liberdade dos de hoje. Contentavam-se com os olhares de longe, de um extremo ao outro, localizando sua eleita, chegando quase a destroncarem os pescoços, felizes em mandarem o "baleiro" entregar um pacotinho de balas coloridas, que de longe ela, feliz, agradecia com um olhar cheio de admiração e ternura. Finalmente, a campainha tocava mais forte, a luz se apagava e todos se voltavam atentos para a tela. O piano de Dulce e as clarinetas de Adail, Tonico e Arthur dos Anjos faziam um esforço tremendo, procurando suplantar o barulho do motor. O filme era mudo, mas a orquestra fazia o complemento, tocando as músicas alegres ou tristes de acordo com os acontecimentos da tela. E quando estávamos no maior entusiasmo, vibrando e torcendo para que o "cowboy" matasse o bandido e fugisse com a mocinha, ouvia-se um forte estalo, baralhava-se tudo, apareciam na tela números de cabeça para baixo e o barulho era ensurdecedor... Oh, tristeza! A fita arrebentara-se. De repente acendiam-se as luzes e levava mais de uma hora para o conserto. Enquanto esperávamos, começavam os comentários. Todo mundo gesticulava, tomava partido dos artistas, dava sugestões, discordava de certas passagens do filme e safam até pescoções dos mais exaltados, em quem discordasse de suas opiniões. Não se admitia que o herói morresse ou bancasse o patife. Durante uma sessão acontecia de a fita se arrebentar dez a quinze vezes, e todos, pacientemente, esperavam. Quase de madrugada, os meninos acordavam assustados quando aparecia na tela o letreiro: "Volte na próxima semana..." e o filme ficava no ar, numa parte bem emocionante. A gente ficava triste, saía com as pernas dormentes e o corpo todo doído. Mas, aí é que vinha o melhor. Passávamos oito dias vivendo o filme e comentando o que se passara na tela, querendo adivinhar o que viria na próxima semana. E surgiam muitas apostas. No dia seguinte, eu já acordava com a voz gritada e forte do Augustão conversando, na rua, com Sebastião Peba e Augusto Candeeiro. Estes não perdiam uma sessão e como era divertido ouví-los. Éramos vizinhos na rua Cel. Celestino e Padre Teixeira. Por mais de duas horas eles comentavam os episódios, esquentando-se num sol preguiçoso de mês de junho. Aos poucos, os amigos infalíveis vinham chegando: Joãozinho de Sra. França, Zé Teixeira, o velho Maçarico com seus espertos rapazinhos - Geraldo, Candinho (mais tarde Cabo Santana) e Tião mais velho e mais letrado e que já trabalhava na tipografia da Gazeta do Norte e era sempre solicitado para ensinar-lhes a pronunciar os nomes revezados dos artistas daquele tempo: Laura La Plante, William Desmond, Clara Baw, Mary Pick Ford, Douglas Fairbanks, Emil Janmings, eram os ídolos dos velhos e crianças. Ninguém sabia inglês ou outra língua estrangeira qualquer. Assim eram os simples moradores da "Rua de Baixo", mas tinham gosto, inteligência e eram verdadeiros artistas quando executavam os lindos "dobrados" na Banda Euterpe Montes-clarense. Os meninos fantasiavam-se de "cowboy" com enormes chapéus de palha à moda "Tom-Mix", montados em cabos de vassoura, escarreiravam-se dando tiros, com a boca, durante oito dias, à espera da próxima sessão. Hoje escutando pelo rádio a cerimônia da inauguração do novo Cine Montes Claros, tudo isto me veio à mente, como um filme cômico e movimentado. Que saudades senti dos meus oito anos! Como tudo era simples e bom, e como as crianças contentavam-se com tão pouco! Meu pobre cineminha de ontem, desapareceu. Todos o esqueceram, assim como seus primeiros donos. Mas, ele não poderia morrer para sempre. Havia alguém que o faria renascer e o seu nome surgiria novamente, prestigiando os que tanto lutaram e desejaram, naquele tempo distante, uma distração para a gente simples daquela Montes Claros. Hoje, tudo mudou. A cidade é limpa, ajardinada, cheirosa e asfaltada. As famílias antigas já não vêm aos bandos ao chamado da estridente campainha. Desapareceram quase todas, e as crianças têm sua hora certa. Ao invés disto, os modernos carros deslizam confortáveis, macios e silenciosos, quase como cochichos de namorados, trazendo os casais amorosos ao cinema e em filas enormes num colorido maravilhoso quase interrompem as ruas... Hoje, também, um belo e moderno prédio se erguera no mesmo local do "galpão" de João Paculdino, e um cinema com todas as técnicas e modernos aparelhos proporcionando luxo, conforto aos espectadores exigentes da nossa cidade civilizada. Parabéns, Mário, você foi o mágico que fez essa transformação. Com o coração ainda cheio de saudades, eu lhe envio esta mensagem de agradecimento. Você não deixou meu cineminha desaparecer, você o transformou, para alegria de todos. A lembrança do meu cineminha de outrora ficou guardada para sempre, apenas, no coração de uma saudosista. Todos o esqueceram! E de seu novo "Cine Montes Claros", Mário, você poderá orgulhar-se: todos lembrar-se-ão dele, no futuro. Será um marco de civilização, a prova do seu esforço, inteligência, entusiasmo e amor por esta terra e, mais ainda, um grande e precioso presente à nossa querida Montes Claros. (Do caderno de Reminiscências. Janeiro de 1970)
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(Com relação à mensagem N° 18964, de 07.12.2006, quero aguçar a memória de nossa grande Ruth Tupinambá, dedicando-lhe uma foto propaganda, tirada de um cartaz montado há mais de sessenta e cinco anos, de um dos muitos filmes que passaram no antigo Cine Theatro Montes Claros. À esquerda da foto, está o meu pai José Gomes de Oliveira. Essa fita, como assim eram chamadas os filmes que passavam nas sessões de cinema daquela epóca, foi um dos maiores sucessos da sétima arte, segundo relatos de quem a assistiu. Também, para que ela rememore aqueles tempos, segue a foto do antigo Cine Theatro Montes Claros. Saudações Montes-clarenses Wagner Gomes)
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