Oh, vós que buscais a Montes Claros de tempos não tão distantes!
Vendo este breve, em que se avisa sobre um alarido ímpio na madrugada da Sexta-Feira da Paixão em minha terra, ocorre-me chamar-vos.
Vinde visitar a Semana Santa de Montes Claros, de tempos ainda próximos.
Era toda de luto cerrado.
Já na quarta-feira anterior à sagrada semana, Padre Dudu conduzia a procissão de archotes. Eu estou nela, menino; sigo a caminhada noturna, lenta, devota, homens de um lado, mulheres do outro.
Revejo o mesmo padre Dudu, pela manhã de Domingo de Ramos, cantando, cantando hosanas! Hosanas!, e nós o seguimos, vivando.
Depois, o padre tão bom, ainda que às vezes repentinamente zangão, o padre Dudu nos envia ao confessionário. Todos.
A Via-Sacra, 3 vezes por semana, repleta de misereres, já está pelo segundo mês de prontidão, toda terça, toda quinta, todo sábado, e não a perdemos.
Cantamos em latim, assim como respondemos a missa em latim, de costas para os fiéis, os olhos apenas para Deus, Nosso Senhor.
A Quinta-feira Santa quando enfim chega, já tem a cidade a seus pés, paralisada e contrita, confessada e comungada.
A Procissão do Encontro sobe as ruas e abre a Sexta da Paixão; dolorida, piedosa, lenta, comovida, atrás dos passos do que vai se encontrar com Sua mãe para dela despedir-se.
Mãe e Filho encontram-se no cruzamento desta vida pequenina, e o punhal exato sobre o coração da mãe comove o menino, a lâmina espetada ali debaixo de negros véus – a mater dolorosa.
“Mulher, eis o seu filho. Filho, eis a sua mãe”, cintila a frase.
(Pelo rádio, lembrai-vos?, pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a PRH5, um Ghuiaroni, piedoso, repete por aguardadas horas o martírio e as quedas de Jesus rumo ao Gólgota, atrás dos quais vamos também, deixando lágrimas, arrependimentos e promessas.)
Ás 3 da tarde, três e quinze, Jesus despido agoniza na Cruz, e nós, de joelhos, cantamos, olhos arrebatados para a Cruz:
Eis o lenho da Cruz, De onde pendeu a salvação do mundo.
Cantamos, penitentes:
Perdão, Deus clemente, perdoai, Senhor.
Cantamos, arrependidos:
Pela Virgem Dolorosa, nossa mãe tão piedosa, Perdoai-nos, ó Senhor.
Cantamos, exultantes:
Vitória, Tu reinarás. Ó Cruz, tu nos salvarás. Vitória....
E a matraca, que da madeira retira secos, metálicos e multiplicados lamentos, a matraca vibra o luto e a dor geral. ( Ouvi, ela está dentro de vós).
À noite, ainda nos braços do meu pai, quase compartindo-lhe o aromoso cigarro de palha e o olhar que não se desfaz, vamos à cerimônia do Descendimento.
Verônica canta do balcão da Matriz, pela voz da linda Ieda (ou será outro nome ?, ajudai-me a recordar), exibindo no sudário a Divina Face.
“Perdão, Deus Clemente!”
Cristo, exausto, é retirado da Cruz e o seguimos na Procissão do Enterro.
Toda a cidade vai junto, a passos lentos, sepultar o que não morre.
Vamos todos, lentamente, dobrados sobre nossas culpas, o Réquien da banda da música soluçando em nome geral.
Depois, voltar para casa a desoras, sem nada falar, sem comentários, severamente mudos, pois a dulcíssima Montes Claros, ao contrário da atual (como leio), não ousa erguer a voz na Sexta-Feira da Paixão.
(Não ousa espalhar pela noite lascas perdidas de um rock insolente e atrevido, trêfego e pândego, a pedir autoridade, e, a mais, piedade.) ***
Sabei, agora, que procuro por minha terra, e isto vos confio.
Sabei que dela, da Santa Semana, só me espera a lua cheia. Restou a lua cheia.
A esplêndida lua-cheia sobre os Montes Claros me devolverá a Semana Santa.
Eu a encontrarei, pois a busco, e ela a mim.
Vinde comigo.
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